domingo, 30 de agosto de 2009

MEMORIAL

Eu, Mateus Anísio de Lima,nascido aos doze dias do mês de agosto do ano de mil novecentos e sessenta e oito(12/08/68)na localidade de Patos,município de Santo Inácio do Piauí. Hoje,a localidade de Patos já é um povoado bem desenvolvido e pertence ao município de Floresta do Piauí. Sofri bastante na minha infância e adolescência, onde nasci e cresci, não tinha escola, meus pais eram agricultores e analfabetos, o meu primeiro contato com a escola foi aos dez anos de idade. Foi quando o Prefeito de Santo Inácio do Piauí em 1978 contratou um professora leiga para ensinar . Dona Mercedes,conhecida por Cecé que usava métodos tradicionais: palmatória e cópias de páginas e páginas por cada palavra escrita errada, dava aula na sua própria casa. A professora tinha como primazia levar o aluno a decorar letras, palavras e textos. Era comum ouvir da professora que fulano tem memória boa, porque todo dia dava a lição.
O ensino naquela época era rotineiro. Toda sexta-feira cantávamos o Hino Nacional; fazíamos ditado e tabuada. Hoje, analisando essas práticas, percebe-se o quanto foram traumatizante. Quantas vidas e sonhos ficaram para trás. Apesar das torturas e dificuldades eu gostava muito da escola. A professora gostava muito de dizer que se não aprendesse o alfabeto,as sílabas,as palavras soltas e os pequenos textos não passaria de ano e conseqüentemente não ganharia a cartilha(livro didático). A minha primeira cartilha chamava-se "Canuto e Eva". Ela era bastante ilustrada, tinha cores fortes e historinhas que faziam parte do imaginário de uma criança. O desejo de ter uma cartilha daquela me motivou a aprender a ler, embora tarde, mas era o momento em que estava sendo oportunizado.
A pesar de não ter acesso a livros quando criança,nas séries iniciais a minha leitura era decorativa, mas lá pela segunda série desenvolvi bem a leitura e gostava de ler cordel. O meu tio que viajava muito para são Paulo, gostava de trazer esse material. Ele também gostava de contar “causos”que mais tarde descobri que a maioria deles são lendas. Além disso, somente os livros didáticos que nem sempre era oferecido. Hoje o aluno tem o seu livro didático, escolhido de forma mais aproximado de sua realidade. As escolas possuem bibliotecas com muitas coleções de paradidáticos e outros livros a fins. As linguagens que vem nos livros estão mais direcionadas e a cada dia os docentes estão refletindo sua prática no que tange a leitura e escrita para aquisição e sistematização do conhecimento no espaço escolar.
No ano de 1979, fiz a primeira série com a professora Francisca de Quincas, que também era leiga, que usava a palmatória, mas sabia valorizar o desempenho de seus alunos. Para mim, foi um ano terrível, perdi minha mãe, o meu pai morava em São Paulo e fiquei morando com minha avó materna. No ano seguinte(1980), o prefeito de Stº Inácio do Piauí, o Senhor Antônio Nogueira construiu um colégio na localidade Patos e lá fiz a segunda série do primário. Já a terceira e quarta série, conclui no povoado Floresta que hoje é a sede do município de Floresta do Piauí. Andava seis quilômetro montado em jumento ou a cavalo. Quando eu estava terminando o primário foi que meu pai comprou uma bicicleta. Como não tinha condição para estudar em uma cidade que oferecia o ginásio, fiquei parado por um bom tempo.
Aos dezesseis anos de idade uma ex-professora, Francisca de Quincas, convidou-me para substituir uma outra professora que havia viajado para São Paulo. Fiquei feliz e aceitei o grande desafio, afinal o meu sonho era ser professor e também ajudar minha avó financeiramente. Então fui um professor leigo por um período de seis anos. Em 1990, já com 22 anos de idade fui morar em São Paulo e lá terminei o Primeiro e Segundo Grau. Foi uma luta, trabalhava durante o dia e estudava à noite em escola pública.
No ano de 2000, retornei ao Piauí, casado e pai de dois filhos, hoje tenho quatro, que me dão muitas alegrias. Em 2001, voltei a morar em Floresta do Piauí, onde fui convidado a trabalhar na educação pelo prefeito municipal Dr. Francisco Átila de Araújo Moura Jesuíno. Fiz o concurso para professor em agosto de 2001. Como docente, estou buscando a cada dia o aprimoramento. Conclui o (PROFORMAÇÃO)em 2003. Sou graduado em Letras/Português pela UESPI. No momento estou fazendo uma pós-graduação em Psicopedagogia Institucional e Clínica pela UVA/MÚLTIPLA e também Especialização em Tecnologias da Educação pela PUC-rio. É um curso a distancia, porém riquíssimo.
Em fim, sou um profissional que acredito no que faço, embora o processo educacional seja lento, mas precisa ser contínuo e o caminho para a realização de algo infindável é eternizar a sua busca. As pedras do meio do caminho fez e fará com que a minha visão com relação à educação seja consistente , inovadora pra melhor entender e servir à sociedade contemporânea.

SUPORTE DOS GENEROS TEXTUAIS

Conteúdo trabalhado como ampliação de referência na Oficina 05-Unidade 09,TP 03


A QUESTÃO DO SUPORTE DOS GÊNEROS TEXTUAIS.
Luiz Antônio Marcuschi


1. Precauções

Este ensaio pretende ser uma pequena contribuição para a análise do suporte de gêneros textuais. A tese central é a de que todo gênero tem um suporte, mas a distinção entre ambos nem sempre é simples e a identificação do suporte exige cuidado. Para isso é necessário definir categorias e considerar aspectos limítrofes na relação gênero-suporte. Como aqui nada é conclusivo, estas sugestões não passam de um convite à discussão e aconselham cautela.1

Alimenta esta análise a convicção de que aqui se oferece um conjunto de problemas relevantes para a melhor compreensão do funcionamento dos próprios gêneros textuais. Como ressaltado nas observações finais, o importante, no caso, é que dispomos de elementos empíricos para comprovar a validade das posições defendidas, pois os gêneros se dão materializados em linguagem e são visíveis em seus habitats. Contudo, a comprovação não se dá na observação a olho nu e sim com base em categorias. Assim, esta abordagem visa a fornecer precisamente algumas categorias para a análise e mostra como podem ser usadas.

Não se trata de fazer uma classificação de suportes, mas de analisar como eles contribuem para seleção de gêneros e sua forma de apresentação. Seria interessante observar como desde a antiguidade os suportes textuais variaram, indo das paredes interiores de cavernas à pedrinha, à tabuleta, ao pergaminho, ao papel, ao outdoor, para finalmente entrar no ambiente virtual da Internet. Mas este é um roteiro de análise que não será aqui percorrido. Com efeito, nossa sociedade foi das inscrições rupestres à pichação urbana, um caminho curioso que sugere inúmeras interpretações e não necessariamente uma evolução.

Uma observação preliminar pode ser feita a respeito da importância do suporte. Ele é imprescindível para que o gênero circule na sociedade e deve ter alguma influência na natureza do gênero suportado. Mas isto não significa que o suporte determine o gênero e sim que o gênero exige um suporte especial. Contudo, essa posição é questionável, pois há casos complexos em que o suporte determina a distinção que o gênero recebe. Tome-se o caso deste breve texto:
“Paulo, te amo, me ligue o mais rápido que puder.
Te espero no fone 55 44 33 22. Verônica .”
Se isto estiver escrito num papel colocado sobre a mesa da pessoa indicada (Paulo), pode ser um bilhete; se for passado pela secretária eletrônica é um recado; remetido pelos correios num formulário próprio, pode ser um telegrama; exposto num outdoor pode ser uma declaração de amor. O certo é que o conteúdo não muda, mas o gênero é sempre identificado na relação com o suporte. Portanto, há que se considerar este aspecto como um caso de co-emergência, já que o gênero ocorre (surge e se concretiza) numa relação de fatores combinados no contexto emergente.

Assim, a discussão sobre o suporte nos leva a perceber como se dá a circulação social dos gêneros. Neste caso vamos desde certos locais como as bibliotecas que não são suportes, mas contém inúmeros suportes textuais, até um outdoor que é um suporte que em geral contém um gênero de cada vez e revela uma certa especialização em relação ao gênero suportado. Por outro lado, seria necessário saber como distinguir um canal ou meio de condução de um serviço para não confundi-los com suporte ou gênero. Aqui vamos desde o telefone (canal), passando pela rede da Internet (serviço), até um pára-choque de caminhão (suporte de um gênero). Tudo isso faz-nos cautelosos na abordagem da questão e exige definição das unidades de nossa análise.

Como última observação cautelar, gostaria de frisar que neste ensaio pouco se dirá a respeito dos suportes de gêneros textuais orais por falta de condições para equacionar a questão. Seguramente, a ninguém ocorre que a boca seja um suporte, mas algum tipo de suporte para os gêneros orais deve haver, já que eles não estão soltos. Acima ficou mais ou menos insinuado que a secretária eletrônica poderia ser vista como suporte de recados, mas isto está longe de ser consensual. Talvez, no caso da oralidade, sejam os próprios eventos os suportes, por exemplo, um congresso acadêmico seria o suporte de conferências e comunicações orais e a mesa-redonda seria o suporte de exposições temáticas.2 No entanto, seguramente não podemos tomar o disco de vinil, o CD-Rom, a fita cassete, as gravações em geral como suportes de gêneros orais. Estes são locais de armazenamento ou meios de transporte e o acesso às falas não é direto. Neste sentido tenho dúvidas também com a secretária eletrônica, se a consideramos como um repositário da mensagem. Nem as transcrições impressas, fruto de gravações orais são suportes. Como nada sei sobre estes assuntos, me reportarei apenas ocasionalmente aos suportes orais, por exemplo, o telefone e o rádio, sem fazer análises detidas.

2. Categorias analíticas

Antes de tratar a questão do suporte dos gêneros textuais propriamente, parece importante definir alguns aspectos preliminares referentes às categorias de análise. Há aspectos centrais no tratamento dos gêneros e alguns outros subsidiários para a análise do suporte. Entre as categorias centrais, sem entrar em escolas teóricas de maneira mais explícita, estão as que aqui serão sumariamente definidas sem maiores discussões por falta de espaço.

Estas funcionam aqui como categorias de análise e, em certos momentos, permitem construir o fenômeno investigado. Entre as categorias centrais a que me refiro incluiria as abaixo listadas, trazendo algumas no final da lista que podem servir para delimitar as questões em algum momento.

2.1 Texto
Trata-se, num primeiro momento, do objeto lingüístico visto em sua condição de organicidade e com base em seus princípios gerais de produção e funcionamento em nível superior à frase e não preso ao sistema da língua; é ao mesmo tempo um processo e um produto, exorbita o âmbito da sintaxe e do léxico, realiza-se na interface com todos os aspectos do funcionamento da língua, dá-se sempre situado e envolve produtores, receptores e condições de produção e recepção específicas. Em essência, trata-se de um evento comunicativo em que aspectos lingüísticos, sociais e cognitivos estão envolvidos de maneira central e integrada, como observou Beaugrande (1997).

2.2. Discurso
De uma maneira geral, o discurso diz respeito à própria materialização do texto e é o texto em seu funcionamento sócio-histórico; pode-se dizer que o discurso é muito mais o resultado de um ato de enunciação do que uma configuração morfológica de encadeamentos de elementos lingüísticos, embora ele se dê na manifestação lingüística. É uma materialidade de sentido. De certo modo a opacidade histórica e lingüística do texto é explicada por uma teoria do discurso, da língua, do inconsciente e da ideologia, articulados sistematicamente. Podemos adotar a posição de Lorenza Mondada (1994:23) quando dá a seguinte definição de discurso:
“No que nos concerne [...] nos utilizaremos do termo discurso como um hiperônimo, compreendendo o texto como a interação, reenviando a um objeto empírico, selecionado ou transcrito para a análise, indissociável do contexto que ele contribuiu para forjar, e caracterizado não pelas determinações exteriores mas pelas dimensões que o próprio discurso marca reflexivamente como pertinentes. O discurso é o lugar da observabilidade da língua em sua atualização num contexto empírico.”

2.3. Domínio discursivo (esfera de atuação humana)
Entende-se aqui como domínio discursivo uma esfera de atividade humana, como lembrou Bakhtin (1979). Não é um princípio de classificação de textos e indica instâncias discursivas, tais como: discurso jurídico, discurso jornalístico, discurso religioso, discurso militar, discurso acadêmico etc. Não abrange um gênero em particular, mas dá origem a vários deles, constituindo práticas discursivas dentro das quais podemos identificar um conjunto de gêneros textuais que às vezes lhe são próprios ou específicos como práticas ou rotinas comunicativas institucionalizadas e instauradoras de relações de poder etc. Neste caso, Domínio Discursivo distingue-se da noção de formação discursiva, tal como proposta por Foucault.

2.4. Gênero (textual, de texto, discursivo, do discurso)
Trata-se de textos orais ou escritos materializados em situações comunicativas recorrentes. Os gêneros textuais são os textos que encontramos em nossa vida diária com padrões sócio-comunicativos característicos definidos por sua composição, objetivos enunciativos e estilo concretamente realizados por forças históricas, sociais, institucionais e tecnológicas. Os gêneros constituem uma listagem aberta, são entidades empíricas em situações comunicativas e se expressam em designações tais como: sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem jornalística, aula expositiva, notícia jornalística, horóscopo, receita culinária, bula de remédio, lista de compras, cardápio de restaurante, resenha, edital de concurso, piada, conversação espontânea, conferência, e-mail, bate-papo por computador, aulas virtuais e assim por diante. Como tal, os gêneros são formas textuais escritas ou orais bastante estáveis, histórica e socialmente situadas.

2.5. Tipo (textual, de texto, de discurso)
Esta noção designa muito mais modalidades discursivas ou então seqüências textuais do que um texto em sua materialidade. O tipo textual define-se pela natureza lingüística de sua composição {modalidade, aspectos sintáticos, lexicais, tempos verbais, relações lógicas, estilo, organização do conteúdo etc.}. Em geral, os tipos textuais abrangem um número limitado de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção. Quando predomina uma característica tipológica num dado texto concreto dizemos que esse é um texto argumentativo ou narrativo ou expositivo ou descritivo ou injuntivo. Os tipos textuais constituem modos discursivos organizados no formato de seqüências estruturais sistemáticas que entram na composição de um gênero textual. Tipo e gênero não formam uma dicotomia, mas se complementam na produção textual.

2.6. Evento discursivo
Esta noção é de difícil definição. Diz respeito ao próprio evento em questão, tal como por exemplo um congresso, ou então um debate televisivo, sendo que neste caso se recobriria com o gênero. Assim, uma aula é a um só tempo um evento discursivo e um gênero, mas o aspecto da observação é diverso. O evento caracteriza-se como uma grandeza sócio-interativa vista sob seu aspecto de realização contemplando os atores e toda a organização. Um jogo de futebol é um evento assim como uma consulta médica é um evento, mas no caso do jogo de futebol não há um foco discursivo e na consulta médica sim. Os atores sociais e os modos de realização são outros. Como a noção de evento é complexa de se definir, deixo-a para mais adiante.

2.7. Serviço
Embora esta não seja uma unidade de análise, deve ser considerada como uma categoria importante para distinguir entre suporte e serviço em alguns casos críticos, como no e-mail e na Internet, por exemplo. O caso dos correios e mesmo da Internet, tanto podem ser um suporte como um serviço a depender do aspecto da observação. Já não é tão simples saber se a mala-direta é um serviço, ou um suporte ou até um gênero como alguns já a classificaram. Defendo que a mala-direta é um serviço pelo qual se enviam correspondências de vários gêneros, publicidades e assim por diante. Tomamos aqui como serviço um aparato específico que permite a realização ou a veiculação de um gênero em algum suporte. Assim, os correios permitem a remessa de cartas, por exemplo; a Internet permite a remessa de informações eletrônicas e ao mesmo tempo a realização e instalação de páginas pessoais como suportes de gêneros diversos.

2.8. Canal
Tecnicamente, o canal seria o meio físico de transmissão de sinais; este é o caso do rádio, da televisão e do telefone quando vistos como emissora ou aparelho operando como canal de transmissão. Mas em certos casos o canal pode ser confundido com o suporte dos sinais transmitidos por operarem como lócus de fixação. Pode-se dizer que o canal se caracteriza como um condutor e o suporte como um fixador.3

2.9. Instituição
Este é o caso de escola, igreja, quartel, universidade, tribunal etc., que podem ser vistos como instituições, mas não como suportes. As instituições podem constituir em alguns casos o que se poderia chamar de estruturas de formação discursiva ou algo parecido (não no sentido foucaultiano).

2.10. Grandes continentes
Tomo como grande continentes os ambientes e os locais que servem de grandes “armazéns” ou locais de concentração de materiais impressos ou orais. Entre estes continentes estariam: (a) Bibliotecas – comporta tanto livros como outros suportes textuais; a biblioteca não pode ser tomada como um suporte, já que seria inviável uma análise neste sentido. A função de uma biblioteca é guardar obras. (b) Livrarias – seguramente, uma livraria contém livros e outros suportes, mas de modo diverso que uma biblioteca, já que na livraria os livros estão à venda e não para consulta ou retirada para consulta. Mas a livraria também não é um suporte. (c) Papelarias – aqui estamos novamente no mesmo caso das livrarias, mas com algumas características diversas. Não temos um suporte. (d) Editoras – este é outro caso de uma situação em que não se tem um suporte e sim um tipo de produtora de suportes. (e) Escritórios – ali guardam-se os gêneros textuais e se consome textos, mas este não é um suporte. (f) Museus – também neste caso não temos um suporte, embora aqui já estejamos entrando num caso bastante complexo e que se torna quase-limite para a questão.

Este leque categorial leva-me introduzir a noção de suporte para discutir com mais calma a questão a seguir. Aqui introduzo uma noção vaga da questão para que o quadro fique completo. Suporte textual tem a ver centralmente com a idéia de um portador do texto, mas não no sentido de um meio de transporte ou veículo, nem como um suporte estático e sim como um locus no qual o texto se fixa e que tem repercussão sobre o gênero que suporta. De importância neste caso é a questão de saber qual é o grau de dinamismo do suporte. Admitimos que ele não é passivo e tem relevância no próprio gênero como tal, já que um texto em um ou outro lugar recebe influência desse lugar em que se situa. O difícil será responder a esta indagação: dada sua natureza, qual a contribuição do suporte para o funcionamento do gênero? Além disso, há a questão central afirmada logo na abertura deste ensaio: todo gênero textual tem um suporte. Será que isso se aplica de maneira universal aos gêneros orais?

Em conclusão a este item o gráfico a seguir é uma tentativa de permitir uma visão integrada de como se comportam estas categorias que operariam na análise para identificação do suporte.

QUADRO GERAL DAS CATEGORIAS ANALÍTICAS



3. Por uma noção de suporte

como lembrado, acha-se em seus inícios a discussão a respeito do suporte dos gêneros. Essa situação é curiosa quando se observa que todos os textos ancoram em algum suporte. O fato já poderia ter sido alvo de análises mais acuradas. No entanto, não está claro o que seja um suporte textual. Seguramente a noção de suporte não pode ser tomada no sentido que a expressão recebe nos dicionários de língua. Por exemplo, de acordo com o Dicionário Aurélio, suporte é “aquilo que suporta ou sustenta alguma coisa”; ou então “material que serve de base para a aplicação de tinta, esmalte, verniz etc.” ou no caso de “suporte de impressão: Qualquer material (papel, cartão etc.) que recebe a impressão de fôrmas nas máquinas de imprimir”. Já o Dicionário Houaiss traz em uma de suas acepções ligada à rubrica ‘documentação’, o seguinte para ‘suporte’: “base física (de qualquer material, como papel, plástico, madeira, tecido, filme, fita magnética etc.) na qual se registram informações impressas, manuscritas, fotografadas, gravadas etc.”

Essas definições, embora empiricamente corretas, não são suficientes para nossa análise e é necessário ir um pouco além. Assim, a tentativa será sugerir uma acepção de suporte que sirva para os propósitos da análise do gênero.

Intuitivamente, entendemos aqui como suporte de um gênero um locus físico ou virtual com formato específico que serve de base ou ambiente de fixação do gênero materializado como texto. Numa definição sumária, pode-se dizer que suporte de um gênero é uma superfície física em formato específico que suporta, fixa e mostra um texto.

A idéia aqui expressa comporta três aspectos:
a)suporte é um lugar físico ou virtual
b)suporte tem formato específico
c)suporte serve para fixar e mostrar o texto.
Com (a) supõe-se que o suporte deve ser algo real (pode ter realidade virtual como no caso do suporte representado pela Internet). Esta materialidade é incontornável e não pode ser prescindida. Com (b) admite-se que os suportes não são informes nem uniformes, mas sempre aparecem em algum formato específico, tal como um livro, uma revista, um jornal, um outdoor e assim por diante. Além disso, o fato de ser específico significa que foi comunicativamente produzido para portar textos e não é um portador eventual. Com (c) admite-se que a função básica do suporte é fixar o texto e assim torná-lo acessível para fins comunicativos. Mas como o suporte tem um formato específico e é convencionalizado, ele pode ter contribuições ao gênero. Contudo, isto é problemático, pois também se pode dizer que os gêneros são ecológicos, no sentido de que desenvolvem nichos ou ambientes de realização mais adequados, seja para se fixarem ou circularem. Seria interessante analisar a hipótese de que os gêneros têm preferências e não se manifestam na indiferença a suportes.

Com respeito ao aspecto (a), me foi feita a pergunta sobre qual seria o suporte dos textos escritos no ar com colunas de fumaça por aviões, em dias comemorativos, por exemplo.4 Os gêneros realizados nestes textos seriam “faixa comemorativa”, “poema” e outros, quanto a isso não haveria dúvidas. Quanto ao suporte, diria que neste caso é a nuvem de fumaça e não o ar ou o céu como um todo, nem a atmosfera terrestre. Trata-se de uma materialidade, isto é, a fumaça sustentada pelo ar, já que é mais leve do que ele. Assim é o caso de um outdoor que serve de suporte para uma publicidade, mas está suspenso num cavalete, o que equivale ao ar que sustenta a nuvem de fumaça. Poderia fazer a mesma analogia com a tinta no papel, a qual não é o suporte e sim o material que exibe as letras, palavras e perfaz a escrita.

É muito difícil contemplar o contínuo que aqui surge, pois ele não é discreto e não de pode dizer onde um acaba e outro começa. Tome-se o caso de uma carta pessoal. Pode-se estabelecer esta cadeia:

carta pessoal (GÊNERO) → papel-carta (SUPORTE) → tinta (MATERIAL DA ESCRITA) → correios (SERVIÇO DE TRANSPORTE) ...

Não é fácil estabelecer a mesma cadeia para todos os gêneros, mas isto serve para pensar as unidades componentes dessa cadeia. O suporte firma ou apresenta o texto para que se torne acessível de um certo modo. O suporte não deve ser confundido com o contexto nem com a situação, nem com o canal em si, nem com a natureza do serviço prestado. Contudo, o suporte não deixa de operar como um certo tipo de contexto pelo seu papel de seletividade. Este é um problema altamente complexo ainda não bem-compreendido. Aqui abrimos a discussão sobre qual o papel do suporte na relação com os gêneros e indagamos se ele acarreta alguma conseqüência para o funcionamento dos gêneros. A idéia central é que o suporte não é neutro e o gênero não fica indiferente a ele. Mas ainda está por ser analisada a natureza e o alcance dessa interferência. Um aspecto que vamos discutir adiante, ligado a esta questão, é o problema da reversibilidade de funções que o suporte poderia operar em alguns casos de gêneros que migram para vários suportes.

O mais importante neste caso é distinguir entre suporte e gênero, o que nem sempre é feito com precisão. Eu mesmo, em trabalhos anteriores, havia identificado o outdoor como gênero, o que é feito por vários autores, mas hoje admito claramente que o outdoor é um suporte público para vários gêneros, com preferência para publicidades, anúncios, propagandas, comunicados, convites, declarações, editais. Não é qualquer gênero que aparece num outdoor, pois esse é um suporte para certos gêneros, preferencialmente na esfera discursiva comercial ou política. Este exemplo sugere que se trate o suporte na relação com outros aspectos, tais como: domínio discursivo, formação discursiva, gênero e tipo textual.

A relação entre eles não constitui uma ordem hierárquica, já que não há um sistema de subordinação interna. Veja-se que o jornalismo é um domínio discursivo, ao passo que o jornal é seguramente um suporte e que a ideologia capitalista norte-americana se oferece como uma esfera de formação discursiva bastante nítida, sendo a reportagem jornalística o gênero textual em questão e as seqüências narrativas internas seriam o tipo textual dominante no caso no caso de uma reportagem sobre a Guerra no Iraque publicada no New York Times. Assim, dentro de cada conjunto há distinções claras, embora não se possa estabelecer uma hierarquia. O gráfico a seguir dá uma idéia melhor disto:



Já vimos que todos os textos se realizam em algum gênero e que todos os gêneros comportam uma ou mais seqüências tipológicas e são produzidos em algum domínio discursivo que por sua vez se acha dentro de uma formação discursiva, sendo que os textos sempre se fixam em algum suporte pelo qual atingem a sociedade. Agora podemos indagar se os suportes são veículos dos gêneros. Num certo sentido eles são, mas não podemos confundir o veículo com o canal. Assim, os Correios podem ser um veículo ao modo de um serviço, mas não são um canal nem um suporte para as cartas que transportam. Já a mala direta poderia ser um suporte e um veículo, ao passo que o radio é um veículo ou meio quando olhado na sua condição de “Rádio X” ou “Rádio Y”. Do ponto de vista do suporte, podemos dizer que uma embalagem é um suporte na relação com o rótulo enquanto gênero, mas um envelope não é um suporte na relação com a carta pessoal. Contudo, o envelope é um suporte para o endereço.

4. Formato do suporte e natureza do gênero textual

Duas questões surgem aqui: (a) há alguma relação direta entre o formato específico do suporte e a natureza do gênero que ele fixa? e (b) qual a influência que o suporte pode exercer sobre o gênero? Num certo sentido, as duas indagações se imbricam a ponto de se tornarem uma só. Isto por que se um gênero tem preferência por algum suporte, este suporte será o preferido para a realização daquele gênero, o que equivale a esta questão básica: o suporte interfere no gênero?

Parece importante observar dois aspectos: (a) funções do gênero e (b) formato textual do gênero. Assim, no caso de (a) indaga-se a respeito de possíveis interferências do suporte na função. Já em (b) indaga-se até que ponto o formato do suporte tem influências diretas sobre algum dos processos de textualização tendo em vista sua interferência no processo de recepção. Por exemplo, o fato de um determinado gênero como a publicidade aparecer num outdoor ou numa revista semanal ou numa revista mensal não é indiferente. Uma publicidade numa revista masculina como a Playboy, ou feminina como Vogue, ou na revista de bordo Ícaro ou então em revistas de divulgação semanal como Veja, Istoé ou num jornal como o Diário de Pernambuco, vai ter características diversas sob o ponto de vista da textualização. Por outro lado, considerando (a) pode-se pensar se um poema num livro didático, em um jornal ou num livro de poemas, enquanto suportes diversos, será a mesma coisa. A solução não é simples.


Caso interessante é a questão do editorial que vai variar muito em sua forma de conteúdo e natureza interna se for um editorial de revista semanal, tal como a revista Veja, por exemplo, ou um editorial de jornal diário como no caso da Folha de São Paulo. Sabemos que no jornal o editora traz a posição do jornal sobre um tema candente no dia. Mas na revista o editorial é uma visão geral dos temas da semana. E se formos observar o editorial de uma a revista masculina ou de revistas científicas, cada vez vai ser outra coisa, ou seja, o suporte vai mudar. Será que temos sempre um editorial ou já temos cada vez outro gênero?

Tomemos o caso do livro didático por parecer mais complexo. E neste caso comecemos com o Livro de Língua Portuguesa, que é um caso mais simples do que o Livro de Geografia, por exemplo. Os gêneros de texto que aparecem no livro didático de Português mantém ou não a mesma função original? Sabemos que há quem trate o livro didático como gênero, mas aqui o livro didático será decididamente visto como um suporte, com os argumentos a serem apresentados adiante. Seguramente, o livro didático é um suporte bem diverso do que uma revista semanal. Não só os destinatários e os objetivos do livro didático e da revista semanal são diversos, mas também as esferas de atividade discursiva são outras. Contudo, um dos elementos centrais para esta distinção é a idéia de que o livro didático tem interesses e objetivos específicos na escolha de certos gêneros (busca gêneros adequados a certos objetivos do ensino, visa a uma variação ampla, contempla os mais freqüentes, exemplifica peculiaridades estruturais e funcionais), o que não atinge a estrutura dos gêneros, mas sua funcionalidade imediata no que tange ao interesse e não à função.

Mesmo uma propaganda continua propaganda no livro didático, mas ali ela não serve mais aos propósitos originais e agora opera como exemplo para produzir tais objetivos. Será que se poderia dizer que isto a torna um gênero diferente? Creio que se poderia postular aqui a sugestão de uma reversibilidade de função para o caso dos textos do livro didático. Não se trata de uma reversibilidade de forma, já que esta fica intacta. Como se verá adiante, isto não equivale a uma transmutação do gênero na acepção de Bakhtin, mas a uma reunião de texto num determinado local (suporte). Por isso, o livro didático é um suporte e os gêneros que ali figuram mantém suas funções, embora não de forma direta, já que assumem o propósito de operarem naquele contexto como exemplos para produção e compreensão textual.

Tome-se o caso do testamento de algum Imperador que se acha exposto num museu. Ele continua sendo um testamento ou agora é apenas um documento histórico sem a função de testamento? O museu não é um suporte, mas uma instituição, assim como uma igreja, um quartel ou uma universidade. Seguramente, os textos que circulam aqui ou ali recebem neste momento outra funcionalidade (reversão de funções), mas não deixam de ter suas características formais de gênero preservadas.

Essas questões não foram ainda tratadas em detalhe nem analisadas em suas repercussões sobre os processos de textualização ou sobre elementos constitutivos dos textos como as seleções lexicais e outros. Embora não tenha autonomia, o suporte tem relevância na constituição de alguns aspectos daquilo que transporta ou suporta. Em muitos casos, o suporte é uma espécie de base que porta contextos muito específicos que podem trazer algum tipo de influência. Assim, se um texto sai num jornal ou em um livro ou se está afixado em um quadro de avisos numa parede, isto vai ter diferentes formas de recepção. Adiante farei algumas reflexões sobre uma possível interferência do suporte no sentido, mas a idéia central é que isso parece mais difícil, embora alguns efeitos possam mudar de acordo com o suporte.

Assim, uma listagem de nomes num quadro de avisos gerais ou numa placa comemorativa ou numa caderneta de alunos é algo bem diverso e aparece como um determinado gênero. Por exemplo, no quadro de avisos pode ser a listagem de notas de u ma disciplina, na placa comemorativa pode ser a relação de formandos do ano ou então a relação dos premiados e assim por diante. Neste caso, tanto o quadro de avisos como a placa comemorativa5 servem como suportes. É provável que muitos dos indagados achariam que a placa seria apenas um gênero, mas todos ou quase todos diriam que o quadro de avisos é um suporte.

5. Suporte convencional e incidental

Aspecto a ser considerado com cautela é o que diz respeito à natureza do suporte do ponto de vista de sua constituição comunicativa. Há suportes que foram elaborados tendo em vista a sua função de portarem ou fixarem textos. São os que passo a chamar de suportes convencionais. E outros que operam como suportes ocasionais ou eventuais, que poderiam ser chamados de suportes incidentais, com uma possibilidade ilimitada de realizações na relação com os textos escritos. Em princípio, toda superfície física pode, em alguma circunstância, funcionar como suporte. Vejam-se os troncos de árvores em florestas com declarações de amor ou poemas em suas cascas. Por isso, convém restringir a noção de suportes textuais para o caso dos suportes convencionais. Não obstante isso, vamos analisar outros suportes incidentais até porque ele são freqüentes na vida urbana.

Assim, o corpo humano pode servir de suporte para textos, mas não é um suporte convencional. Hoje está se tornando cada vez mais comum tatuar o corpo com uma imagem, um poema ou uma declaração de amor. O corpo também pode servir para os alunos inscreverem (em especial na perna ou coxa) suas colas para provas ou exames. O rosto de muitos estudantes funciona como suporte para slogans de protesto político, como já se viu muitas vezes. Até corpos de animais como cachorros e cavalos receberam inscrições de protesto. Contudo, não parece razoável que do ponto de vista comunicativo se possa classificar o corpo humano e o livro na mesma categoria de suporte textual, já que este foi concebido como suporte de textos desde o início.6

Hoje em dia ninguém diria que os vasos de barro, as colunatas e os túmulos seriam suportes ideais para a circulação de textos. No entanto, boa parte dos textos fenícios de 2 ou 3 mil anos atrás nos chegaram em vasos e colunatas ou em túmulos e assim por diante. Naquele tempo era mais comum que a circulação da escrita fosse feita nestes suportes e em pedrinhas, tabuletas ou pergaminhos, mas isto devido à limitação de suportes e à pouca veiculação de discursos na forma escrita. Hoje temos outros recursos, tais como o livro, o jornal, a revista, o outdoor e mais modernamente os hipertextos. Todos estes suportes são de modo especial próprios para a fixação dos textos e sua veiculação comunicativa e têm uma feição de suportes prototípicos.

Assim, podemos identificar duas categorias de suportes textuais: (a) a categoria dos suportes convencionais, típicos ou característicos, produzidos para essa finalidade e (b) a categoria dos suportes incidentais que podem trazer textos, mas não são destinados a esse fim de modo sistemático nem na atividade comunicativa regular. A seguir, apresento uma série de exemplos de cada uma destas categorias.

6. Alguns suportes convencionais

Neste momento, adotando a distinção feita acima entre suportes convencionais e suportes incidentais, vou me restringir a elencar alguns suportes convencionais, isto é, que foram desenhados com a função específica de serem suportes. Em seguida, lembro alguns que podem operar como suportes incidentais.

Como a questão ainda é controversa, parece conveniente iniciar a análise dos suportes discutindo a natureza do suporte genérico mais comum de todos que é a folha de papel. Mas não parece que se deve tomar a folha de papel como o suporte do gênero de uma maneira geral, pois se no caso de uma carta pessoal ela seria, já no caso de um livro a página não é o suporte e sim o livro. No livro, a página é uma parte do todo. Se fôssemos tomar o papel impresso como um suporte de uma maneira geral, não teríamos distinções entre livros, revistas, livros didáticos, quadro de avisos e outros como suportes distintos.

No caso de um cartão postal, o suporte é sem dúvida o pedaço de cartolina em que o cartão está impresso. Mas nem por isso vamos tomar a cartolina como um suporte em geral. Claro que para um painel exposto num congresso temos a cartolina como um suporte daquele gênero e o cavalete como suporte da cartolina. Mas não é também sobre esse tipo de cadeia ou contínuo de suportes que aqui se refletirá, pois neste caso corre-se o risco de uma reductio ad absurdum e logo vai haver alguém falando em metassuporte. Assim, não terminaríamos nunca de perguntar quem suporta quem, já que nada está solto no ar, nem mesmo o texto em nuvens de fumaça. Nosso limite de observação é sempre o suporte imediato e não um continuum que pode desviar o olhar para outros fenômenos.

Com base nesta observação preliminar, vejamos vários suportes e suas características. Não se trata de uma classificação nem de um levantamento exaustivo. Neste momento não faço mais do que uma breve incursão pelo tema.

6.1. Livro
Seguramente, todos vamos concordar que o livro não é um gênero textual. Seja ele qual for, desde que visto como livro. Trata-se de um suporte maleável, mas com formatos definidos pela própria condição em que se apresenta (capa, páginas, encadernação etc.). O livro comporta os mais diversos gêneros que se queira. Contudo, podemos ter um livro que ao mesmo tempo realiza apenas um gênero, como no caso do romance ou da tese de doutorado. Nestes casos, distinguimos entre os gêneros textuais romance e tese de doutorado e o suporte textual livro. Trata-se de coisas diversas.7 Tomemos um livro contendo cartas pessoais de alguém. Aquelas cartas já não são mais pessoais desde o momento em que foram publicadas. Passaram a ser documentos públicos e até seu status pode ter mudado se forem cartas de algum escritor. Mas com a divulgação em livro passam a operar como uma obra literária. O problema é que mudou a função e a natureza daqueles textos no gênero carta pessoal. Trata-se de um livro com muitos exemplares de um gênero ou simplesmente um gênero como tal? O livro é neste caso um suporte e o gênero é carta pessoal, por exemplo, se ali estiverem somente cartas pessoais.

Para uma breve reflexão sobre a complexidade do problema, tomemos um livro lançado recentemente, As Boas Mulheres da China, de Xinran (2003). Ali temos uma série de crônicas ou relatos da autora8 como apresentadora de um programa de rádio na China. Trata-se de um livro com um gênero único que são crônicas que foram escritas para aquele livro. Mas no interior do livro encontramos várias cartas que haviam sido remetidas à radialista. Essas cartas estão ali transcritas no decorrer de um relato. São ainda cartas ou já foram transmutadas e fazem parte integrante do relato sem autonomia de carta? No mesmo livro há uma longa entrevista-diálogo com uma universitária. Trata-se de uma entrevista ou faz apenas parente do livro? Ou será uma estratégia da autora ara aquele formato, pois não consta que tenha sido gravada. Há também um comovente relato de uma jovem adolescente molestada sexualmente pelo pai que se apaixona por uma mosca como um ser amado e escreve um diário íntimo sobre a triste situação. Este diário foi parar nas mãos da apresentadora que o publica no livro. Trata-se de um diário ou não mais? Veja-se que a situação é complexa, pois temos um livro operando como suporte de uma série de relatos e estes estão perpassados de vários gêneros que os compõem. Temos ali cartas pessoais, entrevistas, diálogos, diário íntimo, declarações de amor, bilhetes e outros gêneros. Contudo, eles não têm autonomia e figuram como parte de um todo orgânico maior, que é uma obra programada desde sua origem com aqueles elementos.

Em suma, parece que a questão é um tanto artificial, pois um livro é sempre um suporte, sendo que am alguns casos contém um só gênero (um livro de poemas), em outros casos contém muitos gêneros diversos (uma obra com as publicações de um determinado jornal) ou então um único gênero (romance). Em todos os casos o livro é um suporte para os gêneros ou gênero que comporta. O problema parece ser se o livro didático, por exemplo, “engole” ou “transmuta” os gêneros do mesmo jeito que o romance. Vejamos o caso mais de perto.

6.2. Livro didático
Em primeiro lugar, é conveniente considerar que não fazemos uma distinção sistemática entre “livro e “livro didático”, já que se trata de fenômenos similares. Contudo, como há elementos muito específicos do livro didático e uma funcionalidade típica, tratamos a questão em separado, mas todos são livros. Em segundo lugar, seria conveniente considerar que mesmo o livro didático pode ser dividida pelo menos em dois conjuntos: (a) o livro didático de português e (b) o livro didático de disciplinas como geografia, física, matemática, etc. Estes dois conjuntos têm peculiaridades, mas não constituem algo essencialmente diverso.

Tal como foi exposto anteriormente, livro didático é nitidamente um suporte textual, embora a opinião não seja unânime a este respeito. Não obstante os argumentos em contrário, ainda se pode dizer que o livro didático (LD), particularmente o LD de língua portuguesa, é um suporte que contém muitos gêneros, pois a incorporação dos gêneros textuais pelo LD não muda esses gêneros em suas identidades, embora lhe dê outra funcionalidade, fato ao qual denominei reversibilidade de função. Falo aqui em funcionalidade e não função para que se tenha claro este aspecto. Por exemplo, uma carta, um poema, uma história em quadrinhos, uma receita culinária e um conto continuam sendo isso que representam originalmente e não mudam pelo fato de migrarem para o interior de um LD. Não é o mesmo que se dá, por exemplo, no caso de um romance que incorpora cartas, poemas e anúncios, entre outros.

O problema da incorporação dos gêneros no caso do romance, tal como tratado por Bakhtin (1979), diz respeito a uma “transmutação” de gêneros que é efetuada por um gênero secundário ao incorporar outros gêneros. Certamente, Bakhtin nunca teria classificado o livro didático entre os gêneros secundários e sim como um conjunto de gêneros. Aspecto importante é a vasta produção de gêneros tipicamente da esfera do discurso pedagógico, tal como a explicação textual, os exercícios escolares, a redação, instruções para produção textual e muitos outros que se acham no LD. O espaço pedagógico tem muitos outros gêneros que circulam nessa área e não migram para o LD, tais como as conferências, os relatórios, as atas de reuniões etc. Tudo indica, pois, que o LD pode ser tratado como um suporte com características muito especiais.

6.3. Jornal (diário)
O jornal, diário e mesmo o jornal semanal, é nitidamente um suporte com muitos gêneros. Estes gêneros são em boa medida típicos e recebem, em função do suporte, algumas características em certos casos, tal como o da notícia. Aqui situam-se também as cartas do leitor e as notas sociais, entre outros. No jornal, temos gêneros que não aparecem em revistas semanais, como: anúncios fúnebres, convites para missas de sétimo dia, previsões meteorológicas, resumos de filmes, horóscopo diário e assim por diante. Mas há outros comuns com as revistas, como notícias, reportagens, editoriais, receitas culinárias, história em quadrinhos, charge, entrevistas e assim por diante.

6.4. Revista (semanal/mensal)
A revista semanal poderia ser vista no contexto do jornal diário, mas além de conter sensivelmente menos gêneros textuais que o jornal, tem uma peculiaridade no processo de textualização, como se frisou há pouco. Jornais diários e revistas divergem em alguns aspectos. Em primeiro lugar, muitos gêneros são mais específicos de jornais diários do que revistas semanais. Deve-se ter em mente que as revistas semanais, quinzenais ou mensais também divergem entre si e os jornais são em geral diários. Assim certos gêneros que circulam com notícias ou fatos apenas do dia (p. ex., anúncios fúnebres e classificados) pouco aparecem em revistas. Mas apenas uma análise detalhada diria se há diferenças específicas. O certo é que a titulação (manchetagem) em revistas e jornais tem diferenças notáveis. E aí entramos em aspectos que podem ser influenciados pela natureza do suporte.

6.5. Revista científica (boletins e anais)
Seguramente, as revistas científicas, os anais de congressos e os boletins de associações científicas, por exemplo, são suportes de gêneros bastante específicos e ligados a um domínio discursivo (o científico, acadêmico ou instrucional). Ali encontramos artigos científicos, resenhas, resumos, comunicações, bibliografias, debates científicos, programação de congressos, programas de cursos e outros desta natureza. São suportes hoje tradicionais e que se especializam de maneira muito clara. Pelo fato de serem considerados científicos, há inclusive um status aos gêneros por eles veiculados que é diferente dos textos similares que aparecem em jornais diários ou em revistas semanais de divulgação ou noticiosas.

6.6. Rádio
Não obstante ter dito no início que não me reportaria aos gêneros orais de maneira sistemática, lembro o rádio como suporte pela sua relevância e por ter sido desenhado para este fim. O rádio também pode ser considerado um suporte na medida em que se toma como um lugar de fixação e não apenas como a rádio emissora ou tecnologia. Conta com uma multiplicidade de gêneros. Mas como ele conta com a transmissão sonora sem o recurso visual, certamente terá uma interferência diversa da televisão. As notícias na TV, no rádio e no jornal não têm o mesmo tipo de tratamento em relação ao discurso relatado ou reportado. Há pouco discurso direto (citações de fala) no rádio e na TV, ao passo que isso ocorre mais no jornal e na revista.

6.7. Televisão
A televisão acha-se no mesmo caso que o rádio, mas com a diferença de que aqui temos a imagem e não só o som. Além disso, poderíamos pensar em meios ou sistemas de transporte diversos na TV, já que ela pode servir-se de outros suportes e até de eventos complexos, pois na TV podemos ter a transmissão de teatro, cinema, congresso e assim por diante. E não sabemos ainda como tratar o caso do cinema e do teatro. Estes não são propriamente suportes e sim ambientes ou até instituições. Já a peça de teatro e o filme em si são gêneros.

6.8. Telefone
Igualmente ao caso do rádio, temos aqui um suporte para gêneros orais. O telefone está no mesmo plano que os anteriores e é um suporte quando não se pensa apenas na tecnologia. Classifico como um suporte-meio. Nele se dão muitos gêneros, mas haveria que discutir se distinguimos entre o telefone enquanto um aparelho e a telefonia como uma técnica de comunicação. Assim, a telefonia permite a realização de gêneros que o telefone não permitiria. Não me parece clara a distinção que se faz entre ambos e isso deveria ser melhor pensado.

6.9. Quadro de avisos
Este é um caso interessante que pode ser tido como um suporte pela quantidade de gêneros que abriga, mas há quem o considere um gênero textual, o que parece ser equivocado. Num quadro de avisos temos publicidades, avisos, poemas, listagens de notas, informações diversas, cartazes de eventos, placas, sugestões, propostas, regimento de cursos, recortes de jornal com notícias, editoriais etc. Trata-se de um suporte com características próprias que contém no geral textos de curta extensão. Mas os quadros de avisos hoje podem conter até mesmo outros suportes como os folders e jornais inteiros afixados. Também contém material visual como fotos e desenhos isolados.

6.10. Outdoor
Trata-se de um suporte e não de um gênero. Como lembrado acima, em alguns momentos eu o classifiquei como gênero, mas dada a diversidade que esse “suporte” veio assumindo quanto aos gêneros que alberga e quanto à função desses gêneros, eu o classifico hoje como suporte. O outdoor tem peculiaridades muito interessantes e mereceria um estudo à parte. Ele veicula, como já se viu, gêneros bastante especializados, mas vem se generalizando cada vez mais.

6.11. Encarte
Como vamos tratar o encarte em um jornal diário? Muitas vezes é uma revista completa, em outros casos é uma publicidade, uma propaganda, uma campanha publicitária e assim por diante. Mas o encarte sempre vem dentro de um outro recipiente ou suporte. Já o próprio nome diz que se trata de algo dependente. Podemos falar de suportes de suportes? É importante não considerar a bula de remédio como um encarte por vir situada no interior de uma embalagem.

6.12. Folder
Tudo indica que o folder pode ser tido como um suporte de gêneros diversos, embora haja quem o trate como gênero. O folder é um suporte que fixa gêneros tais como campanhas publicitárias, campanhas, publicidades, instruções de uso, currículos e assim por diante. Existem folders com mais de um gênero.

6.13. Luminosos
Os luminosos foram produzidos para veicularem textos e imagens. São estruturas comunicativas com as quais os usuários têm em geral um contato bastante fugaz e não tão sistemático. Na maioria dos casos ali figuram textos em movimento e gêneros ligados à publicidade de grandes empresas ou campanhas governamentais.

6.14. Faixas
As faixas também são suportes tradicionais e altamente convencionais. São lugares adequados para veicular textos para serem vistos de longas distâncias. Também servem para decorar as mesas de abertura de congressos ou festividades. As faixas constituem uma espécie de suporte bastante comum para eventos festivos. Elas portam um gênero de cada vez. São inscrições, logomarcas ou então indicação de eventos. Há faixas comemorativas de aniversários de empresas, festividades e situações de grande público.

Como se nota, esta relação tem a finalidade de sugerir uma distinção entre alguns suportes pela natureza dos gêneros que portam ou até mesmo pela natureza de sua interferência nos gêneros que fixam e suportam.

7. Alguns suportes incidentais

Tal como lembrado acima, os suporte aqui denominados incidentais são apenas meios casuais e que emergem em situações especiais ou até mesmo corriqueiras, mas não são convencionais, como os apontados no item anterior. Ninguém nega que uma porta de banheiro porta textos, mas isto não é comum em todos os banheiros, como não é comum todos terem seus corpos com inscrições ou que as calçadas, as paredes e os muros em geral estejam cheios de inscrições. Em cidades ou locais de maior cuidado, evitam-se inscrições nestes lugares, o que indica que não se os tem como convencionais para portarem textos escritos. Tudo isso me faz crer que de modo mais sistemático se devesse falar de suporte em sentido estrito para os do grupo acima e não do grupo aqui apresentado. Contudo, como é inegável que boa parte dos textos hoje em circulação pelos ambientes urbanos se acham nesses suportes incidentais, tratamos deles aqui, já que não devem ser ignorados.

7.1. Embalagem
Este é um caso interessante, pois no geral a embalagem não seria tida como um suporte. Contudo, tomamos a embalagem como um suporte na medida em que nas embalagens podem estar vários gêneros. Embalagens de produtos comestíveis muitas vezes trazem não só o rótulo do produto, mas uma receita. Ou então no caso de remédios pode ter uma breve bula de remédio e assim por diante. Quanto a este último aspecto, pode-se indagar se as indicações que estão no rótulo são algo diverso da bula que vem dentro da caixa de remédio. Se indagarmos de vários especialistas, eles dirão que a bula é diferente do que aquilo que vem na embalagem. Mas se observarmos as instruções que aparecem na embalagem elas parecem uma bula. Veja-se este caso típico da bula/instrução que vem na embalagem de remédio. Ali temos ainda coisas como código de barras, endereço, descrição do produto (vejam-se os rótulos de vinhos com duas partes) Portanto, a embalagem não é um gênero e sim um suporte. Já a bula que vem dentro de uma embalagem de remédio não te na embalagem o seu suporte, pois aqui a embalagem estaria para a bula como uma espécie de recipiente.

7.2. Pára-choques e pára-lamas de caminhão
Não parece haver dúvidas de que este seja um suporte de gêneros muito especiais, tais como frases e provérbios. Certamente o caminhão é um veículo em vários sentidos, pois ele transporta tanto o pára-choque como o texto. Mas não é só o pára-choque do caminhão e sim também de automóveis e demais veículos como ônibus etc. que servem, para esta finalidade. Esta é uma família de suportes ligadas a um meio de transporte. Talvez devêssemos pôr aqui também as janelas traseiras de ônibus urbanos, que hoje se tornaram suportes sistemáticos especialmente de publicidades.

7.3. Roupas
Embora me decida pelas roupas como suportes, não parece muito claro se devemos tomá-las como tal, por exemplo, uma camiseta. Ela parece ser um suporte de gêneros, já que hoje em dia porta textos dos mais variados gêneros, como poemas, provérbios etc. Mas a camiseta não traz de maneira sistemática textos e talvez devêssemos restringir este aspecto. Além disso, se consideramos a camiseta de jogador de clube de futebol temos aqui uma estrutura fixa com o nome do jogador nas costas, o emblema do time na frente e opcionalmente uma publicidade. Já uma camiseta de jogador da seleção nacional não tem publicidade e vem padronizada. Parece que estes dois tipos de camisetas são gêneros e não suportes. Outras roupas (casacos, gravatas, calças, vestidos, meias, roupas íntimas) tem inscrições variadas, mas em escala mais reduzida que as camisetas.

7.4. Corpo humano
O corpo humano vem cada vez mais servindo para veicular textos em geral muito curtos e na forma de tatuagens ou de slogans para protestos em situações especiais. Nem por isso o corpo humano passa a ser um suporte convencional. Ele continuará sendo um suporte incidental que vai variar de acordo com as culturas. Nas culturas indígenas, os corpos são muitas vezes os “suportes semióticos” mais convencionais em situações de festas ou cerimônias especiais. Mas isto pela circunstância de não terem outros suportes específicos nem disporem da escrita convencional em alguma de suas formas.

7.5. Paredes
Todo tipo de parede está aqui incluído. Podem ser paredes de casas, edifícios ou mesmo de interiores como universidades, escola etc. Esses suportes operam muitas vezes em um contínuo como no caso de suportarem um quadro de avisos que é o suporte de gêneros.

7.6. Muros
Hoje em dia parece que os muros estão se tornando suportes convencionais para alguns gêneros textuais tais como as propagandas políticas. Eles sevem para inscrições, propagandas, publicidades e pichações em geral. São textos pouco desenvolvidos, mas de grande eficácia comunicativa. Mesmo que os muros sejam usados como suportes em grande escala, eles não são convencionados para esta finalidade como as revistas, os jornais e os livros.

7.7. Paradas de ônibus
Imagino que as paradas de ônibus estão sendo tomadas como bons locais para afixar ou mesmo inscrever textos pela sua condição estratégica como ambiente favorável à comunicação em grade escala. São locais muito visíveis e quando há alguma parede ou um muro, comportam vários gêneros. Eles são para o grande público. Ali encontramos campanhas ou publicidades de apelo geral como carros, apartamentos, produtos de beleza e outros deste tipo, mas não de supermercados nem de produtos perecíveis.

7.8. Estações de metrô
Embora as estações de metrô sejam do mesmo estilo que a parada de ônibus, são sempre maiores e com mais possibilidade de gêneros. Tem algo de similar com paredes e muros quanto aos gêneros que comportam, mas há ainda quadros de avisos e cartazes ou outros suportes que estão nelas afixados, o que lhes dá um caráter diferenciado nem sempre ligado à idéia de suporte de gêneros e sim de suporte de suportes.

7.9. Calçadas
Hoje as calçadas passaram a ser locais para inscrições, tal como se institui a calçada da fama, em que pessoas famosas põem a impressão de seus pés e a inscrição de seus nomes. Esse suporte em geral porta textos curtos e permanentes.

7.10. Fachadas
As fachadas de prédios, em geral de grandes extensões, são similares a paredes, mas ficam sempre de frente para grandes locais de circulação pública e portam inscrições maiores com gêneros de curta extensão. Na maioria das vezes são logomarcas ou os nomes de empresas, marcas de grandes produtos.

7.11. Janelas de ônibus (meios de transporte em geral)
De alguns tempos para cá, as janelas de ônibus, em especial a parte traseira, tornaram-se um suporte de publicidades e campanhas governamentais. Mas isto não é comum e não tem regularidade. Trata-se de um suporte muito incidental.

A listagem de suportes incidentais seria imensa se fôssemos enumerar todos os suportes que eventualmente contém algum texto. Por isso, fica aqui apenas a sugestão de observação e o critério básico para sua classificação nesta categoria. Trata-se de locais eventuais e não convencionais para a atividade comunicativa.

8. Casos claros de serviços em função da atividade comunicativa

Os casos abaixo não devem ser situados entre os suportes textuais, sejam os incidentais ou os convencionais. A tendência é vê-los como serviços, daí a decisão em tratá-los como casos específicos separados dos suportes. Aparecem aqui porque em muitos casos são listados como suportes.

8.1. Correios
Os correios são menos um suporte e mais um meio de transporte ou um serviço. É muito diferente do que o caso da revista e do jornal. Quanto a isso seria interessante discutir se o telefone e os correios formam um conjunto de suporte-meio diversos da televisão e do rádio.

8.2. {Programa de} E-mail
Aqui está um caso curioso, pois se tomarmos o programa “outlook”, por exemplo, teremos sem dúvida um suporte do tipo “correio eletrônico”, mas se tomarmos os e-mails enquanto correlatos das cartas pessoais, teremos um gênero. Neste caso, trato a palavra e-mail como se fosse uma homonímia, ou seja, um termo com duas acepções tanto de origem como de função. Contudo, o e-mail na função de correio eletrônico é nitidamente um serviço que transporta os mais variados gêneros, tais como propagandas, ofícios, bilhetes, e-mails, cartas comerciais, relatórios, artigos científicos e assim por diante. Não obstante isso, hoje a idéia mais comum em relação aos e-mails é que sejam vistos como um gênero da área epistolar, assim como observou Juliana de Assis (2002).

8.3. Mala-direta
A mala-direta se assemelha a um serviço e deveria ser tratada como tal. No geral, a mala-direta veicula gêneros diversos do domínio discursivo da publicidade até a comunicação entre empresas e remessa de documentos a clientes de empresas. A expressão ‘mala-direta’, quando empregada pelos Correios, é apenas uma designação para um suporte, mas enquanto empregada por uma empresa pode ser até mesmo a designação de um gênero, como o caso de uma carta de aniversário. O caso merece um estudo à parte pela complexidade. Há malas diretas para pessoas (uma carta de aniversário que o gerente do banco manda no seu aniversário); há malas diretas para 10.000 pessoas (as cartas que recebemos de um candidato a deputado); há malas diretas com publicidades de empresas (as promoções de uma loja) e assim por diante. Mas há casos muito mais complexos do que estes sendo chamados de mala direta.

8.4. Internet
Trata-se de mais um caso limite. Pessoalmente, trato a Internet como um suporte que alberga e conduz gêneros dos mais diversos formatos. A Internet contém todos os gêneros possíveis.

8.5. Homepage e site
Para alguns autores a homepage e até mesmo o site é um gênero, mas para outros é um suporte. Creio que de um modo geral a homepage é um suporte e não um gênero. Não tenho condições de expor argumentos neste caso agora, mas os debates conduzidos em aula me deixaram com alguma clareza quanto a não se considerar este caso como um gênero e sim como um suporte. Além disso, parece claro que a homepage institucional carrega uma série de gêneros. Basta observar a homepage de qualquer universidade pare ver a diversidade de coisas feitas ali dentro. Entre outras coisas está ali a possibilidade da matrícula de alunos on-line. Se tomarmos uma homepage de algum servidor da Internet como a UOL, vemos que se trata de um serviço ou suporte de outros suportes, já que ali estão revistas, jornais e livros.

9. Suporte textual e formas de leitura

Em estimulantes observações a respeito do hipertexto, Sírio Possenti (2002:208), reporta-se ao problema da relação entre o suporte dos gêneros textuais e a leitura, dizendo:
“Quando ouvi falar dos trabalhos de Chartier pela primeira vez, o que ouvi foi que ele teria tentado mostrar que a leitura que se faz dos textos é afetada pelo suporte. Ou seja, que não se lê da mesma maneira um rolo de papiro e um livro com a confirmação mais ou menos conhecida de todos.”

Intrigado com estas bizarras sugestões, Possenti não conseguia ver algum “poder” emanando do suporte que pudesse afetar a leitura. O simples fato de um texto estar num papiro único, num livro impresso em milhares de exemplares, na tela do computador rolando verticalmente não poderia afetar a leitura. Desconfiando dessa ingênua posição, Possenti foi ao Chartier (1994, 1997) para ver o que o autor dizia e não seus solertes intérpretes. Segundo Possenti (2002:209), Chartier de fato acredita que se lê de forma diversa o mesmo texto em suportes diversos, não no sentido de se compreender diferentemente o texto e sim no sentido de se manter com ele uma relação diferente, ou seja, há uma relação diferente ao se ler um edital de concurso num jornal ou num outdoor, pois no jornal eu posso fazer anotações, sublinhar etc., interferindo no texto, mas no outdoor isto já não é possível (pelo menos em circunstâncias normais).

Isto quer dizer que nós não operamos do mesmo modo com os textos em suportes diversos, mas isso não significa ainda que os suportes veiculem conteúdos diversos para os mesmos textos. O suporte não muda o conteúdo, mas nossa relação com ele, não só por permitir anotações, mas por mater um contato diferenciado com ele.

A questão é interessante e já foi abordada acima em outros termos quando nos indagávamos se a leitura de uma publicidade num livro didático e num jornal tinha o mesmo objetivo e a mesma significação. Possenti (2002:209) também julga que uma crônica lida num jornal diário e a mesma crônica lida numa coletânea de crônicas do autor em um livro de crônicas pode ser vista de modo diverso.

Aspecto também merecedor de mais reflexão é o que diz respeito ao suporte numa dada situação e configuração. Neste caso, a mesma notícia publicada num jornal do interior de Pernambuco e no New York Times, certamente terá outra repercussão e será lida de modo diverso. Não que tenha conteúdo diferente e sim terá um efeito diferente no leitor. Isto tem a ver com o suporte ou com o status daquele suporte particular?

10. Observações críticas

Embora aqui estejam algumas análises até certo ponto sensatas, tudo isto merece uma revisão cuidadosa e indubitavelmente séria com análises mais profundas e exemplos mais específicos. Mas fique claro que a questão do suporte, para ser resolvida a contento, deve ser precedida da solução de uma série de outros problemas relativos aos gêneros textuais. Também tenha-se em mente que refletir sobre o problema do suporte é refletir sobre o problema da circulação textual em nossa sociedade. A complexidade dos suportes revela a complexidade social em que os próprios textos circulam.

Creio que este tema é um caso típico para estudos de aplicação de metodologias empíricas de coleta de dados e análise in loco, a fim de verificar qual o grau de veracidade das afirmações. Pois os elementos de que tratamos aqui são empíricos de grande relevância. Não acredito, no entanto, que aqui estejamos diante de uma discussão semiótica, mas sim de uma discussão da organização social pela circulação da escrita.

E este aspecto leva-me a levantar uma questão que ficou apenas lembrada no início desta abordagem. Onde ficam e como ficam os suportes dos gêneros orais? Esta questão deve ser discutida e com muita cautela. Temos o teatro, o cinema, o rádio, a televisão, todos lembrados aqui, mas sem uma especificação da modalidade de realização. São suportes, canais, instituições, ambientes? Talvez não valha a pena fazer uma distinção rigorosa em todos os casos, mas sim discutir a questão do suporte de uma maneira geral e depois disso ver como os demais problemas se põem. Assim o próximo passo é entrar em campo e discutir esses aspectos empiricamente.

Nem sempre a decisão a respeito da identificação de um suporte, um gênero, um serviço, evento e um canal é clara. As fronteiras dependem da perspectiva da observação e do modo como encaramos os fenômenos. Esta discussão deveria ser conduzida com calma e critérios claros. Há casos em que não se sabe ao certo como tratar um determinado fenômeno, por exemplo, o folder que pode ser ao mesmo tempo um suporte para vários gêneros como volante, resumo, esquema etc., mas que em certos momentos foi tratado como gênero. Um Seminário e uma mesa-redonda certamente não devem ser tratados como gênero e sim como eventos ou talvez até mesmo como suportes.

Pode-se também indagar até que ponto o corpo humano seria um suporte na medida em que suporta e fixa inscrições como tatuagens. As tatuagens são gêneros interessantes e hoje tornou-se comum tatuar o nome do namorado ou dos filhos. É possível que o corpo seja suporte, mas apenas incidental, tal como sugerimos acima. Seria adequado dizer que as costas, a perna, o braço, a barriga são suportes?

Há ainda certos casos que me parecem muito complexos quando vistos como suportes textuais, tais como o teatro e o cinema que seguramente não são suportes. Por outro lado, as mesas-redondas e os simpósios são eventos, mas poderiam ser suportes de gêneros orais, já que os suportes de gêneros orais parecem ser eventos. Nestes casos já começamos a entrar em certos pontos que se imbricam com domínios discursivos e com instituições, tais como o quartel, a escola, a igreja vistos na qualidade de locais ou instituições em que se produzem gêneros e não domínios discursivos.

Aspecto já levantado aqui, mas não claramente desenvolvido, é o que diz respeito ao problema dos gêneros em suportes (convencionais e incidentais) em locais públicos em áreas abertas. Esses suportes comportam gêneros bastante marcados, em geral de apelo publicitário ou de divulgação ampla. Esses suportes em ambientes públicos abrigam um número limitado de gêneros. Na maioria dos casos são gêneros de vida efêmera naquele suporte. A impressão é que pelo fato de ser um ambiente amplo e aberto, os gêneros ali presentes têm vida sazonal. Seja pela moda, pela política ou algo assim. Entre esses suportes estão: (a) Outdoors; (b) Paredes; (c) Muros; (d) Paradas de ônibus; (e) Estações de metrô; (f) Calçadas; (g) Fachadas; (g) Luminosos; (h) Faixas; (i) Janelas de ônibus; (j) Placas públicas.

As observações feitas neste item revelam que uma cidade pode ser um ambiente textual de muitos e variados suportes. Na realidade, somos cada vez mais uma sociedade textualizada e em locais públicos multiplicam-se os usos da escrita.

Por fim, o tema mais relevante de todos e que foi por diversas vezes tocado e me parece merecer maior reflexão é o que diz respeito à relação de influências mútuas entre gêneros e suportes. A presença dos gêneros não é indiferente nos diversos suportes nem imune a eles. Mas qual é precisamente essa influência não está ainda de todo claro.

Fontes de referência

BAKHTIN, Michail. [1979]. 1992. Os gêneros do discurso. In BAKHTIN, M. Estética da Criação
Verbal. São Paulo, Martins Fontes, pp. 277-326.

BEAUGRANDE, Robert de. 1997. New Foundations for a Science of Text and discourse: Cognition,
Communication, and the Freedom of Access to knowledge and Society. Norwood, Ablex.

CHARTIER, Roger. 1994. A ordem dos livros. Brasília, Editora da UNB.

CHARTIER, Roger. 1997. A aventura do livro do leitor ao navegador. São Paulo, Editora da UNESP.

DUBOIS, Jean et alii. 1973. Dicionário de Lingüística. São Paulo, Cultrix.

HOUAISS, Antônio. 2002. Dicionário Houaiss. (versão eletrônica)

MONDADA, Lorenza. 1994. Verbalisation de L’Espace et Fabrication du Savoir: Approche linguistique de la construction des objets de discours. Lausanne, Université de Lausanne.

Novo Aurélio. Século XXI. 2002.

POSSENTI, Sírio. 2002. Os Limites do Sentido. Curitiba, Criar Edições.

XINRAN. 2003. As boas Mulheres da China. São Paulo, Companhia das Letras.

GÊNEROS TEXTUAIS E FUNCIONALIDADE.

Conteúdo trabalhado como ampliação de referências,na Oficina 05-unidade 09,TP 03.

Gêneros textuais1: definição e funcionalidade
Luiz Antônio Marcuschi
1.Gêneros textuais como práticas sócio-históricas

Já se tornou trivial a idéia de que os gêneros textuais são fenômenos histó­ricos, profundamente vinculados à vida cultural e social. Fruto de trabalho coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comu­nicativas do dia-a-dia. São entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa. No entanto, mesmo apre­sentando alto poder preditivo e interpretativo das ações humanas em qualquer contexto discursivo, os gêneros não são instrumentos estanques e enrijecedores da ação criativa. Caracterizam-se como eventos textuais altamente maleáveisl. dinâmicos e plásticos. Surgem emparelhados a necessidades e atividades sócio­culturais, bem como na relação com inovações tecnológicas, o que é facilmente perceptível ao se considerar a quantidade de gêneros textuais hoje existentes em relação a sociedades anteriores à comunicação escrita.
Quanto a esse último aspecto, uma simples observação histórica do surgimento dos gêneros revela que, numa primeira fase, povos de cultura essencialmente oral desenvolveram um conjunto limitado de gêneros. Após a invenção da escrita alfabética por volta do século VII A. c., multiplicam-se os gêneros, surgindo os típicos da escrita. Numa terceira fase, a partir do século XV, os gêneros expan­dem-se com o flores cimento da cultura impressa para, na fase intermediária de industrialização iniciada no século XVlII, dar início a uma grande ampliação. Hoje, em plena fase da denominada cultura eletrônica, com o telefone, o gravador, o rádio, a TV e, particularmente o computador pessoal e sua aplicação mais notável, a intemet, presenciamos uma explosão de novos gêneros e novas formas de comunicação, tanto na oralidade como na escrita.
Isto é revelador do fato de que os gêneros textuais surgem, situam-se e integram-se funcionalmente nas culturas em que se desenvolvem. Caracteri­zam-se muito mais por suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais do que por suas peculiaridades lingüísticas e estruturais. São de difícil definição formal, devendo ser contemplados em seus usos e condicionamentos sócio­pragmáticos caracterizados como práticas sócio-discursivas. Quase inúmeros em diversidade de formas, obtêm denominações nem sempre unívocas e, assim como surgem, podem desaparecer.
Esta coletânea traz estudos sobre uma variedade de gêneros textuais relacio­nados a algum meio de comunicação e analisa-os em suas peculiaridades organizacionais e funcionais, apontando ainda aspectos de interesse para o trabalho em sala de aula. Neste contexto, o presente ensaio caracteriza-se como uma introdução geral à investigação dos gêneros textuais e desenvolve uma bateria de noções que podem servir para a compreensão do problema geral envolvido. Certamente, haveria muitas outras perspectivas de análise e muitos outros caminhos teóricos para a definição e abordagem da questão, mas tanto o exíguo espaço como a finalidade didática desta breve introdução impedem que se façam longas incursões pela bibliografia técnica hoje disponível.
2. Novos gêneros e velhas bases
Como afirmado, não é difícil constatar que nos últimos dois séculos foram as novas tecnologias, em especial as ligadas à área da comunicação, que propi­ciaram o surgimento de novos gêneros textuais. Por certo, não são propria­mente as tecnologias per se que originam os gêneros e sim a intensidade dos usos dessas tecnologias e suas interferências nas atividades comunicativas diárias. Assim, os grandes suportes tecnológicos da comunicação tais como o rádio, a televisão, o jornal, a revista, a internet, por terem uma presença marcante e grande centralidade nas atividades comunicativas da realidade social que ajudam a criar, vão por sua vez propiciando e abrigando gêneros novos bastante característicos. Daí surgem formas discursivas novas, tais como editoriais, artigos de fundo, notícias, telefonemas, telegramas, telemensagens, teleconferências, videoconferências, reportagens ao vivo, cartas eletrônicas (e-mails), bate-papos virtuais, aulas virtuais e assim por diante.
Seguramente, esses novos gêneros não são inovações absolutas, quais cria­ções ab ovo, sem uma ancoragem em outros gêneros já existentes. O fato já fora notado por Bakhtin [1997] que falava na 'transmutação' dos gêneros e na assi­milação de um gênero por outro gerando novos. A tecnologia favorece o surgimento de formas inovadoras, mas não absolutamente novas. Veja-se o caso do telefonema, que apresenta similaridade com a conversação que lhe pré-existe, mas que, pelo canal telefônico, realiza-se com características próprias. Daí a dife­rença entre uma conversação face a face e um telefonema, com as estratégias que lhe são peculiares. O e-mail (correio eletrônico) gera mensagens eletrônicas que têm nas cartas (pessoais, comerciais etc.) e nos bilhetes os seus antecessores. Contudo, as cartas eletrônicas são gêneros novos com identidades próprias, como se verá no estudo sobre gêneros emergentes na rnídia virtual.
Aspecto central no caso desses e outros gêneros emergentes é a nova relação que instauram com os usos da linguagem como tal. Em certo sentido, possi­bilitam a redefinição de alguns aspectos centrais na observação da linguagem em uso, como por exemplo a relação entre a oralidade e a escrita, desfazendo ainda mais as suas fronteiras. Esses gêneros que emergiram no último século no contexto das mais diversas mídias criam formas comunicativas próprias com um certo hibridismo que desafia as relações entre oralidade e escrita e inviabiliza de forma definitiva a velha visão dicotômica ainda presente em muitos manuais de ensino de língua. Esses gêneros também permitem observar a maior integração entre os vários tipos de semioses: signos verbais, sons, imagens e formas em movimento. A linguagem dos novos gêneros torna-se cada vez mais plástica, assemelhando-se a uma coreografia e, no caso das publicidades, por exemplo, nota-se uma tendência a servirem-se de maneira sistemática dos formatos de gêneros prévios para objetivos novos. Como certos gêneros já têm um determinado uso e funcionalidade, seu investimento em outro quadro comunicativo e funcional permite enfatizar com mais vigor os novos objetivos.
Quanto a este último aspecto, é bom salientar que embora os gêneros tex­tuais não se caracterizem nem se definam por aspectos formais, sejam eles estruturais ou lingüísticos, e sim por aspectos sócio-comunicativos e funcionais, isso não quer dizer que estejamos desprezando a forma. Pois é evidente, como se verá, que em muitos casos são as formas que determinam o gênero e, em outros tantos serão as funções. Contudo, haverá casos em que será o próprio suporte ou o ambiente em que os textos aparecem que determinam o gênero presente. Suponhamos o caso de um determinado texto que aparece numa revista científica e constitui um gênero denominado "artigo científico"; imagi­nemos agora o mesmo texto publicado num jornal diário e então ele seria um "artigo de divulgação científica". É claro que há distinções bastante claras quanto aos dois gêneros, mas para a comunidade científica, sob o ponto de vista de suas classificações, um trabalho publicado numa revista científica ou num jornal diário não tem a mesma classificação na hierarquia de valores da produção científica, embora seja o mesmo texto. Assim, num primeiro momento podemos dizer que as expressões "mesmo texto" e "mesmo gênero" não são automatica­mente equivalentes, desde que não estejam no mesmo suporte. Estes aspectos sugerem cautela quanto a considerar o predomínio de formas ou funções para a determinação e identificação de um gênero.

3.Definição de tipo e gênero textual
Aspecto teórico e terminológico relevante é a distinção entre duas noções nem sempre analisadas de modo claro na bibliografia pertinente. Trata-se de distinguir entre o que se convencionou chamar de tipo textual, de um lado, e gênero textual, de outro lado. Não vamos aqui nos dedicar à observação da diversidade terminológica existente nesse terreno, pois isso nos desviaria muito dos objetivos da abordagem.
Partimos do pressuposto básico de que é impossível se comunicar verbal­mente a não ser por algum gênero, assim como é impossível se comunicar ver­balmente a não ser por algum texto. Em outros termos, partimos da idéia de que a comunicação verbal só é possível por algum gênero textual. Essa posição, defendida por Bakhtin [1997] e também por Bronckart (1999) é adotada pela maioria dos autores que tratam a língua em seus aspectos discursivos e enunciativos, e não em suas peculiaridades formais. Esta visão segue uma noção de língua como atividade social, histórica e cognitiva. Privilegia a natureza funcional e interativa e não o aspecto formal e estrutural da língua. Afirma o caráter de indeterminação e ao mesmo tempo de atividade constitutiva da língua, o que equivale a dizer que a língua não é vista como um espelho da realidade, nem como um instrumento de representação dos fatos.
Nesse contexto teórico, a língua é tida como uma forma de ação social e histórica que, ao dizer, também constitui a realidade, sem contudo cair num subjetivismo ou idealismo ingênuo. Fugimos também de um realismo externalista, mas não nos situamos numa visão subjetivista. Assim, toda a postura teórica aqui desenvolvida insere-se nos quadros da hipótese sácio-interativa da língua. É neste contexto que os gêneros textuais se constituem como ações sócio-discursivas para agir sobre o mundo e dizer o mundo, constituindo-o' de algum modo.
Para uma maior compreensão do problema da distinção entre gêneros e tipos textuais sem grande complicação técnica, trazemos a seguir uma defi­nição que permite entender as diferenças com certa facilidade. Essa distinção é fundamental em todo o trabalho com a produção e a compreensão textual. Entre os autores que defendem uma posição similar à aqui exposta estão Douglas Biber (1988), John Swales (1990.), Jean-Michel Adam (1990), Jean­Paul Bronckart (1999). Vejamos aqui uma breve definição das duas noções:

a)Usamos a expressão tipo textual para designar uma espécie de construção teórica definida pela natureza lingüística de sua composição {aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas}. Em geral, os tipos textuais abrangem cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção.
b)Usamos a expressão gênero textual como uma noção propositalmente vaga para referir os textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica. Se os tipos textuais são apenas meia dúzia, os gêneros são inúmeros. Alguns exemplos de gêneros textuais seriam: telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem jornalística, aula expositiva, reunião de condomínio, notícia jornalística, horóscopo, receita culinária, bula de remédio, lista de compras, cardápio de restaurante, instru­ções de uso, outdoor, inquérito policial, resenha, edital de concurso, piada, conversação espontânea, conferência, carta eletrônica, bate-papo por compu­tador, aulas virtuais e assim por diante.

Para uma maior visibilidade, poderíamos elaborar aqui o seguinte quadro sinóptico:

TIPOS TEXTUAIS

1.constructos teóricos definidos por proprieda­des lingüísticas intrínsecas;

2.constituem seqüências lingüísticas ou se­qüências de enunciados e não são textos empíricos


3.sua nomeação abrange um conjunto limita­do de categorias teóricas determinadas por aspectos lexicais, sintáticos, relações lógicas, tempo verbal;

4.designações teóricas dos tipos: narração, argu­mentação, descrição, injunção e exposição
GÊNEROS TEXTUAIS

1.realizações lingüísticas concretas defini­das por propriedades sócio-comunicativas;

2.constituem textos empiricamente realiza­dos cumprindo funções em situações comuni­cativas;


3.sua nomeação abrange um conjunto aber­to e praticamente ilimitado de designações con­cretas determinadas pelo canal, estilo, conteú­do, composição e função;

4.exemplos de gêneros: telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhe­te, aula expositiva, reunião de condomínio, ho­róscopo, receita culinária, bula de remédio, lis­ta de compras, cardápio, instruções de uso, outdoor, inquérito policial, resenha, edital de concurso, piada, conversação espontânea, con­ferência, carta.eletrônica, bate-papo virtual, au­las virtuais etc.

Antes de analisarmos alguns gêneros textuais e algumas questões relativas aos tipos, seria interessante definir mais uma noção que vem sendo usada de maneira um tanto vaga. Trata-se da expressão domínio discursivo.

c)Usamos a expressão domínio discursivo para designar uma esfera ou ins­tância de produção discursiva ou de atividade humana. Esses domínios não são textos nem discursos, mas propiciam o surgimento de discursos bastante específicos. Do ponto de vista dos domínios, falamos em discurso jurídico, discurso jornalístico, discurso religioso etc., já que as atividades jurídica, jornalística ou religiosa não abrangem um gênero em particu­lar, mas dão origem a vários deles. Constituem práticas discursivas den­tro das quais podemos identificar um conjunto de gêneros textuais que, às vezes} lhe são próprios (em certos casos exclusivos) como práticas ou rotinas comunicativas institucionalizadas.

Veja-se o caso das jaculatórias, novenas e ladainhas, que são gêneros exclu­sivos do domínio religioso e não aparecem em outros domínios. Tome-se este exemplo de uma jaculatória que parecia extinta} mas é altamente praticada por pessoas religiosas.

Exemplo (1) jaculatória (In: Rezemos o Terço. Aparecida} Editora Santuário, 1977, p.54)
Senhora Aparecida, milagrosa padroeira, sede nossa guia nesta mortal carreira!
á Virgem Aparecida, sacrário do redentor, dai à alma desfalecida vosso poder e valor. á Virgem Aparecida, fiel e seguro norte, alcançai-nos graças na vida, favorecei-nos na morte!
A jaculatória é um gênero textual que se caracteriza por um conteúdo de grande fervor religioso} estilo laudatório e invocatório (duas seqüências injuntivas ligadas na sua formulação imperativa)} composição curta com poucos enunciados, voltada para a obtenção de graças ou perdão} a depender da circunstância.
Em relação às observações teóricas acima, deve-se ter o cuidado de não confundir texto e discurso como se fossem a mesma coisa. Embora haja muita discussão a esse respeito} pode-se dizer que texto é uma entidade concreta realizada materialmente e corporificada em algum gênero textual. Discurso é aquilo que um texto produz ao se manifestar em alguma instância discursiva. Assim, o discurso se realiza nos textos. Em outros termos} os textos realizam discursos em situações institucionais} históricas, sociais e ideológicas. Os textos são acontecimentos discursivos para os quais convergem ações lingüísticas} sociais e cognitivas} segundo Robert de Beaugrande (1997).
Observe-se que a definição dada aos termos. aqui utilizados é muito mais operacional do que formal. Assim} para a noção de tipo textual predomina a identificação de seqüências lingüísticas típicas como norte adoras; já para a noção de gênero textual} predominam os critérios de ação prática} circulação sócio-histórica} funcionalidade, conteúdo temático, estilo e composicionalidade, sendo que os domínios discursivos são as grandes esferas da atividade humana em que os textos circulam. Importante é perceber que os gêneros não são entidades formais, mas sim entidades comunicativas. Gêneros são formas verbais de ação social relativamente estáveis realizadas em textos situados em comunidades de práticas sociais e em domínios discursivos específicos.

4. Algumas observações sobre os tipos textuais
Em geral, a expressão "tipo de texto", muito usada nos livros didáticos e no nosso dia-a-dia, é equivocadamente empregada e não designa um tipo, mas sim um gênero de texto. Quando alguém diz, por exemplo, "a carta pessoal é um tipo de texto informa!", ele não está empregando o termo "tipo de texto" de maneira correta e deveria evitar essa forma de falar. Uma carta pessoal que você escreve para sua mãe é um gênero textual, assim como um editorial, horós­copo/ receita médica, bula de remédio, poema, piada, conversação casual, entrevista jomalística, artigo científlco, resumo de um artigo, prefácio de um livro. É evidente que em todos estes gêneros também se está realizando tipos textuais, podendo ocorrer que o mesmo gênero realize dois ou mais tipos. Assim, um texto é em geral tipologicamente variado (heterogêneo). Veja-se o caso da carta pessoal, que pode conter uma seqüência narrativa (conta uma historinha), uma argu­mentação (argumenta em função de algo), uma descrição (descreve uma si­tuação) e assim por diante.
Já que mencionamos o caso da carta pessoal, tomemos este breve exemplo de uma carta entre amigos. Aqui foram suprimidos alguns trechos e mudados os nomes e as siglas para não identificação dos atores sociais envolvidos:
Exemplo (2): NELFE-003 - Carta pessoal

Seqüências tipológicas:
Descritiva,Injuntiva,Descritiva,Expositiva,Narrativa,Expositiva,Narrativa,Injuntiva,Expositiva
Injuntiva

Gênero textual: carta pessoal
Rio, 11/08/1991

AmigaA.P.
Oi!

Para ser mais preciso estou no meu quarto, escreveno na escrivaninha, com um Micro System ligado na minha frente (bem alto, por sinal).

Está ligado na Manchete FM - ou rádio dos funks - eu adoro funk, principalmente com passos marcados.
Aqui no Rio é o ritmo do momento ... e você, gosta? Gosto também de house e dance music, sou fascinado por discotecas!
Sempre vou à K.I,

ontem mesmo (sexta-feira) eu fui e cheguei quase quatro horas da madrugada.

Dançar é muito bom, principalmente em uma discoteca legal. Aqui no condomínio onde moro têm muitos jovens, somos todos muito amigos e sempre vamos todos juntos. É muito maneiro!

C. foi três vezes à K. 1.,

pergunte só a ele como é!

Está tocando agora o "Melô da Mina Sensu­al", super demais!
Aqui ouço também a Transamérica e RPC}M.

E você, quais rádios curte?
Demorei um tem pão pra responder, espero sinceramente que você não esteja chateada co­migo. Eu me amarrei de verdade em vocês aí, do Recife, principalmente a galera da ET, vocês são muito maneiros! Meu maior sonho é via­jar, ficar um tempo por aí, conhecer legal vocês todos, sairmos juntos ... Só que não sei ao certo se vou realmente no início de 1992. Mas pode ser que dê, quem sabe! /........../
Não sei ao certo se vou ou não, mas fique certa que farei de tudo para conhecer vocês o mais rápido possível. Posso te dizer uma coisa? Adoro muito vocês!

Agora, a minha rotina: às segundas, quartas e sextas-feiras trabalho de 8:00 às 17:00h, em Botafogo . De lá vou para o T., minha aula vai de 18;30 às 10:40h. Chego aqui em casa quinze para meia­noite. E às terças e quintas fico 050 em F. só de 8:00 às 12:30h. Vou para o T.; às 13:30 começa o meu curso de Francês (vou me formar ano que vem) e vai até IS:30h. 16:ooh vou dar aula e fico até 17:30h. 17:40h às 18:30h faço natação (no T. também) e
até 22:40h tenho aula. 1 ./ Ontem eu e
Simone fizemos três meses de namoro;

você sabia que eu estava namorando?

Ela mora aqui mesmo no «ilegível)) (nome do condomínio). A gente se gosta muito, às vezes eu acho que nunca vamos terminar, depois eu acho que o namoro não vai durar muito, entende?

O problema é que ela é muito ciumenta, principalmente porque eu já fui afim da B., que mora aqui também. Nem posso falar com a garota que S. já fica com raiva.

É acho que vou terminando ...

escreva!
Faz um favor? Diga pra M., A. P. e C. que esperem, não demoro a escrever

Adoro vocês!

Um beijão!

Do amigo
P. P.

É notável a variedade de seqüências tipológicas nessa carta pessoal, em que predominam descrições e exposições, o que é muito comum para esse gênero. Não há espaço aqui para maiores detalhes, mas esse modo de análise pode ser desenvolvido com todos os gêneros e, de uma maneira geral, vai-se notar que há uma grande heterogeneidade tipológica nos gêneros textuais.
Portanto, entre as características básicas dos tipos textuais está o fato de eles serem definidos por seus traços lingüísticos predominantes. Por isso, um tipo textual é dado por um conjunto de traços que formam uma seqüência e não um texto. A rigor, pode-se dizer que o segredo da coesão textual está precisa­mente na habilidade demonstrada em fazer essa "costura" ou tessitura das seqüências tipológicas como uma armação de base, ou seja, uma malha infra­estrutural do texto. Como tais, os gêneros são uma espécie de armadura comu­nicativa geral preenchida por seqüências tipológicas de base que podem ser bastante heterogêneas mas relacionadas entre si.2 Quando se nomeia um certo texto como "narrativo", "descritivo" ou "argumentativo", não se está nomeando o gênero e sim o predomínio de um tipo de seqüência de base.
Para concluir essas observações sobre os tipos textuais, vejamos a sugestão de Werlich (1973), que propõe uma matriz de critérios, partindo de estruturas lingüísticas típicas dos enunciados que formam a base do texto. Werlich toma a base temática do texto representada ou pelo título ou pelo início do texto como adequada à formulação da tipologia. Assim, são desenvolvidas as cinco bases temáticas textuais típicas que darão origem aos tipos textuais (o que foi utilizado acima para a segmentação das seqüências observadas na carta acima analisada). Vejamos isto na figura abaixo:
Tipos textuais segundo Werlich (1973)

Bases temáticas

1.Descritiva
2.Narrativa
3.Expositiva
4.Argumentativo

Exemplos

“Sobre a mesa havia milhares de vidros.”
“”Os passageiros aterrissaram em Nova York no meio da noite.””
a)“” Uma parte do cérebro é o órtex.””
b)“” O cérebro tem 10 milhões de neurônios
“” A obsessão com a durabilidade de nas Artes não é permanente.””

Traços lingüísticos

Este tipo de enunciado textual tem uma estrutura simples com um verbo estático no presente ou imperfeito, um complemento e uma indicação circunstancial de lugar

Este tipo de enunciado textual tem um verbo de mudança no pas­sado, um circunstancial de tempo e lugar. Por sua referência temporal e local, este enunciado é designado como enunciado indicativo de ação.
Em (a) temos uma base textual de­nominada de exposição sintética pelo processo da composição. Aparece um sujeito, um predicado (no presente) e um complemento com um grupo nominal. Trata-se de um enunciado de identificação de fenômenos.
Em (b) temos uma base textual denominada de exposição análíti­ca pelo processo de decomposição. Também é uma estrutura com um sujeito, um verbo da família do ver­bo ter (ou verbos como: ""contém'''', “”consiste””, “”compreende””) e um complemento que estabelece com o sujeito uma relação parte-todo. Trata-se de um enunciado de liga­ção de fenômenos.

Tem-se aqui uma forma verbal com o verbo ser no presente e um complemento (que no caso é um ad­jetivo). Trata-se de um enunciado de atribuição de qualidade.

5.Injuntiva

“” pare!””, “” seja razoável!””

Vem representada por um verbo no imperativo. Estes são os enunci­ados incitadores à ação. Estes textos podem sofrer certas modificações significativas na forma e assumir por exemplo a configuração mais longa onde o imperativo é substi­tuído por um ""deve"". Por exem­plo; ""Todos os brasileiros na idade de 18 anos do sexo masculino de­vem comparecer ao exército para alistarem-se." "
Um elemento central na organização de textos narrativos é a seqüência temporal. Já no caso de textos descritivos predominam as seqüências de loca­lização. Os textos expositivos apresentam o predomínio de seqüências analí­ticas ou então explicitamente explicativas. Os textos argumentativos se dão pelo predomínio de seqüências contrastivas explícitas. Por fim, os textos injun­tivos apresentam o predomínio de seqüências imperativas.
Se voltarmos agora ao exemplo (2) da carta pessoal apresentada acima, veremos que cada uma daquelas seqüências lá identificadas realiza os traços lingüísticos aqui apresentados. Não é difícil tomar os gêneros textuais e analisá­los com esses critérios, identificando-lhes as seqüências. Para o caso do ensino, pode-se chamar a atenção da dificuldade que existe na organização das se­qüências tipológicas de base, já que elas não podem ser simplesmente justa­postas. Os alunos apresentam dificuldades precisamente nesses pontos e não conseguem realizar as relações entre as seqüências. E os diversos gêneros seqüenciam bases tipológicas diversas.
5.Observações sobre os gêneros textuais
Como já lembrado, os gêneros textuais não se caracterizam como formas estru­turais estáticas e definidas de uma vez por todas. Bakhtin [1997] dizia que os gêneros eram tipos "relativamente estáveis" de enunciados elaborados pelas mais diversas esferas da atividade humana. São muito mais famílias de textos com uma série de semelhanças. Eles são eventos lingüísticos, mas não se definem por carac­terísticas lingüísticas: caracterizam-se, como já dissemos, enquanto atividades sócio­discursivas. Sendo os gêneros fenômenos sócio-históricos e culturalmente sensí­veis, não há como fazer uma lista fechada de todos os gêneros. Existem estudos
, feitos por lingüistas alemães que chegaram a nomear mais de 4000 gêneros, o que à primeira vista parece um exagero (Veja-se Adamzik, 1997). Daí a desistência progressiva de teorias com pretensão a uma classificação geral dos gêneros.
Quando dominamos um gênero textual, não dominamos uma forma lin­güística e sim uma forma de realizar lingüisticamente objetivos espeáficos em situações sociais particulares. Pois, como afirmou Bronckart (1999:103), "a apro­priação dos gêneros é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática nas atividades comunicativas humanas", o que permite dizer que os gê­neros textuais operam, em: certos contextos, como formas de legitimação discursiva, já que se situam numa relação sócio-histórica com fontes de produção que lhes dão sustentação muito além da justificativa individual.
A expressão "gênero" sempre esteve, na tradição ocidental, especialmente ligada aos gêneros literários, mas já não é mais assim, como lembra Swales (1990:33), ao dizer que "hoje, gênero é facilmente usado para referir uma cate­goria distintiva de discurso de qualquer tipo, falado ou escrito, com ou sem aspirações literárias". É assim que se usa a noção de gênero em Etnografia, Sociologia, Antropologia, Folclore, Retórica e, evidentemente, na Lingüística.
Os gêneros não são entidades naturais como as borboletas, as pedras, os rios e as estrelas, mas são artefatos culturais construídos historicamente pelo ser humano. Não podemos defini-Ios mediante certas propriedades que lhe devam ser necessárias e suficientes. Assim, um gênero pode não ter uma deter­minada propriedade e ainda continuar sendo aquele gênero. Por exemplo, uma carta pessoal ainda é uma carta, mesmo que a autora tenha esquecido de assinar o nome no final e só tenha dito no início: "querida mamãe". Uma publicidade pode ter o formato de um poema ou de uma lista de produtos em oferta; o que conta é que divulgue os produtos e estimule a compra por parte dos clientes ou usuários daquele produto. A título de exemplo, obser­ve-se este artigo de opinião da Folha de São Paulo, que, embora escrito na forma de um poema, continua sendo um artigo de opinião:

Exemplo (3) NELFE - 350 - artigo de opinião

Um novo José
Josias de Souza
-São Paulo-
Diga: ora, Drummond, Agora FMI.
Calma José.
Se você gritasse,
A festa não começou,
se você gemesse,
a luz não acendeu,
se você dormisse,
a noite não esquentou,
se você cansasse,
o Malan não amoleceu,
se você morresse ...
mas se voltar a pergunta:
O Malan nada faria,
e agora José?
mas já há quem faça.
Diga: ora Drummond,


agora Camdessus.
Ainda só, no escuro,
Continua sem mulher,
qual bicho-do-mato,
continua sem discurso,
ainda sem teogonia,
continua sem carinho,
ainda sem parede nua,
ainda não pode beber,
para se encostar,
ainda não pode fumar,
ainda sem cavalo preto,
cuspir ainda não pode,
Que fuja a galope,
a noite ainda é fria,
você ainda marcha, José!
o dia ainda não veio,
Se voltar a pergunta:
o riso ainda não veio,
José, para onde?
não veio ainda a utopia,
Diga: ora Drummond,
o Malan tem miopia,
por que tanta dúvida?
mas nem tudo acabou,
Elementar, elementar,
nem tudo fugiu,
sigo pra Washington
nem tudo mofou.
e, por favor, poeta,
Se voltar a pergunta:
não me chame de José.
E agora José?
Me chame Joseph.
Fonte: Folha de São Paulo, Caderno 1, pág. 2 - Opinião, 04/10/1999

Aspecto interessante no texto acima é que ele apresenta uma configuração híbrida, tendo o formato de um poema para o gênero artigo de opinião. Isso configura uma estrutura inter-gêneros de natureza altamente híbrida e uma relação intertextual com alusão ao poema e ao poeta autor do poema no qual se inspira e do qual extrai elementos: "E agora]oséJJ, de Carlos Drummond de Andrade. Essa característica pode ser analisada de acordo com a sugestão de Ursula Fix (1997:97), que usa a expressão "intertextualidade inter-gênerosJJ para designar o aspecto da hibridização ou mescla de gêneros em que um gênero assume a função de outro. Esta violação de cânones subvertendo o modelo global de um gênero poderia ser visualizada num diagrama tal como este:
INTERTEXTUALIDADE TIPOLÓGICA

A questão da intertextualidade inter-gêneros evidencia-se como uma mescla de funções e formas de gêneros diversos num dado gênero e deve ser distinguida da questão da heterogeneidade tipológica do gênero, que diz res­peito ao fato de um gênero realizar várias seqüências de tipos textuais (por exemplo, o caso da carta pessoal citada). No exemplo acima, temos um gênero funcional (artigo de opinião) com o formato de outro (poema). Em princípio, isto não deve trazer dificuldade interpretativa, já que o predomínio da função supera a forma na determinação do gênero, o que evidencia a plasticidade e dinamicidade dos gêneros.
Resumidamente, em relação aos gêneros, temos:
1)intertextualidade inter-gêneros == um gênero com a função de outro
2)heterogeneidade tipológica == um gênero com a presença de vários tipos

o exemplo do artigo de opinião analisado é um caso para a situação (1) da hibridização textual com inter-gêneros; já a carta pessoal analisada anterior­mente é um exemplo para (2), com uma heterogeneidade tipolÇ>gica muito grande. No geral, este segundo caso é mais comum que o primeiro. Contudo, se tomarmos alguns gêneros, veremos que eles são mais propensos a uma intertextualidade inter-gêneros. Veja, por exemplo, a publicidade que se carac­teriza por operar de maneira particularmente produtiva na subversão da ordem genérica instituída, chamando atenção para a venda de um produto. Desenquadrar o produto de seu enquadre normal é uma forma de enquadrá­10 em novo enfoque, para que o vejamos de forma mais nítida no mar de ofertas de produtos.
É esta possibilidade de operação e maleabilidade que dá aos gêneros enorme. capacidade de adaptação e ausência de rigidez e se acha perfeitamente de acordo com Miller (1984:151), que considera o gênero como "ação social", lembrando que uma definição retoricamente correta de gênero "não deve centrar-se na subs­tância nem na forma do discurso, mas na ação em que ele aparece para realizar­se". Este aspecto vai ser central na designação de muitos gêneros que são definidos basicamente por seus propósitos (funções, intenções, interesses) e não por suas formas. Contudo, voltamos a frisar que isto não significa eliminar o alto poder organizador das formas composicionais dos gêneros. O próprio Bakhtin [1997] indicava a "construção composicional", ao lado do "conteúdo temático" e do "estilo" como as três características dos gêneros.
De igual modo, para Eija Ventola (1995:7), os "gêneros são sistemas semióticos que geram estruturas particulares que em última instância são cap­tadas por comportamentos lingüísticos mediante os registros". Enquanto resul­tado convencional numa dada cultura, os gêneros se definiriam como "ações retóricas tipificadas baseadas em situações recorrentes" (Miller, 1984:159). As formas tornam-se convencionais e com isto genéricas precisamente em virtude da recorrência das situações em que são investidas como ações retóricas típicas. Os gêneros são, em última análise, o reflexo de estruturas sociais recorrentes e típicas de cada cultura. Por isso, em princípio, a variação cultural deve trazer conseqüências significativas para a variação de gêneros, mas este é um aspecto que somente o estudo intercultural dos gêneros poderá decidir.
6. Gêneros textuais e ensino
Tendo em vista que todos os textos se manifestam sempre num ou noutro gênero textual, um maior conhecimento do funcionamento dos gêneros textuais é importante tanto para a produção com para a compreensão. Em certo sentido, é esta idéia básica que se acha no centro dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais), quando sugerem que o trabalho com o texto deve ser feito na base dos gêneros, sejam eles orais ou escritos. E esta é também a proposta central dos ensaios desta coletânea de textos que pretende mostrar como analisar e tratar alguns dos gêneros mais praticados nos diversos meios de comunicação.
As observações teóricas expostas não só visam a esclarecer conceitos como também a apontar a diversidade de possibilidades de observação dos gêneros textuais. Por certo, não estamos aqui em condições de nos dedicarmos a todos os problemas envolvidos, mas é possível indicar alguns. Em especial seria bom ter em mente a questão da relação oralidade e escrita no contexto dos gêneros tex­tuais, pois, como sabemos, os gêneros distribuem-se pelas duas modalidades num contínuo, desde os mais informais aos mais formais e em todos os contextos e situações da vida cotidiana. Mas há alguns gêneros que só são recebidos na forma oral apesar de terem sido produzidos originalmente na forma escrita, como o caso das notícias de televisão ou rádio. Nós ouvimos aquelas notícias, mas elas foram escritas e são lidas (oratizadas) pelo apresentador ou locutor.
Assim, é bom ter cautela com a idéia de gêneros orais e escritos, pois essa distinção é complexa e deve ser feita com clareza. Veja-se o caso acima citado das jaculatórias, novenas e ladainhas. Embora todas tenham sido escritas, seu uso nas atividades religiosas é sempre oral. Ninguém reza por escrito e sim oralmente. Por isso dizemos que oramos e não que escrevemos a Deus.
Tudo o que estamos apontando neste momento deve-se ao fato de os eventos a que chamamos propriamente gêneros textuais serem artefatos lingüísticos concretos. Esta circunstância ou característica dos gêneros torna­os, como já vimos, fenômenos bastante heterogêneos e por vezes híbridos em relação à forma e aos usos. Daí dizer-se que os gêneros são modelos comu­nicativos. Servem, muitas vezes, para criar uma expectativa no interlocutor e prepará-Io para uma determinada reação. Operam prospectivamente, abrindo o caminho da compreensão, como muito bem frisou Bakhtin (1997).
Muitas vezes, em situações orais, os interlocutores discutem a respeito do gênero de texto que estão produzindo ou que devem produzir. Trata-se de uma negociação tipológica. Segundo observou o lingüista alemão Hugo Steger (1974), as designações sugeridas pelos falantes não são suficientemente uni­tárias ou claras, nem fundadas em algum critério geral para serem consistentes. Em relação a isso, lembra a lingüista alemã Elizabeth Gülich (1986) que os interlocutores seguem em geral três critérios para designarem seus textos:
a)canal! meio de comunicação: (telefonema, carta, telegrama)
b)critérios formais: (conto, discussão, debate, contrato, ata, poema)
c)natureza do conteúdo: (piada, prefácio de livro, receita culinária, bula de remédio)

Contudo, isso não chega a oferecer critérios para formar uma classificação nem constituir todos os nomes. Para Douglas Biber (1988), por exemplo, os gêneros são geralmente determinados com base nos objetivos dos falantes e na natureza do tópico tratado, sendo assim uma questão de uso e não de forma. Em suma, pode-se dizer que os gêneros textuais fundam-se em critérios externos (sócio-comunicativos e discursivos), enquanto os tipos textuais fun­dam-se em critérios internos (lingüísticas e formais).
Elizabeth Gülich (1986) observa que as situações e os contextos em que os falantes ou escritores designam os gêneros textuais são em geral aqueles em que parece relevante designá-Ias para chamar a atenção sobre determinadas regras vigentes no caso. É assim que ouvimos pessoas dizendo: "nessa reu­nião não cabe uma piada, mas deixem que eu conte uma para descontrair um pouco". Ou então ouvimos alguém dizer: "fulano não desconfia e discursa até na hora de tomar uma cerveja". Por outro lado, notamos que há casos institucionalmente marcados que exigem, no início, a designação do gênero de texto e a informação sobre suas regras de desenvolvimento. Este é o caso de uma tomada de depoimento na Justiça, em que o Juiz lê as regras e expõe direitos e deveres de cada indivíduo.
Assim, contar piadas fora de lugar é um caso de inadequação ou violação de normas sociais relativas aos gêneros textuais. Isso quer dizer que não há só a questão da produção adequada do gênero, mas também um uso adequado. Esta não é uma questão de etiqueta social apenas, mas é um caso de adequação tipo lógica, que diz respeito à relação que deveria haver, na produção de cada gênero textual, entre os seguintes aspectos:
natureza da informação ou do conteúdo veiculado;
nível de linguagem (formal, informal, dialetal, culta etc.)
tipo de situação em que o gênero se situa (pública, privada, corriqueira, solene etc.)
relação entre os participantes (conhecidos, desconhecidos, nível social, formação etc)
natureza dos objetivos das atividades desenvolvidas
É provável que esta relação obedeça a parâmetros de relativa rigidez em virtu­de das rotinas sociais presentes em cada contexto cultural e social, de maneira que sua inobservância pode acarretar problemas. Assim, numa reunião de negócios, por exemplo, um empresário que se pusesse a cantar o Hino Nacional seria considerado um tanto esquisito e talvez pouco confiável para uma parceria de negócios. Ou alguém que, durante um culto e no meio de uma oração, come­çasse a esbravejar contra o sacerdote ou o pastor não ia ser bem-visto. Neste sentido, os indicadores aqui levantados serviriam para identificar as condições de adequação genérica na produção dos gêneros, espedalmente os orais.
Considerando que os gêneros independem de decisões individuais e não são facilmente manipuláveis, eles operam como geradores de expectativas de compreensão mútua. Gêneros textuais não são fruto de invenções individuais, mas formas socialmente maturadas em práticas comunicativas. Esta era tam­bém a posição central de Bakhtin [1997] que, como vimos, tratava os gêneros como atividades enunciativas "relativamente estáveis".
No ensino de uma maneira geral, e em sala de aula de modo particular, pode-se tratar dos gêneros na perspectiva aqui analisada e levar os alunos a produzirem ou analisarem eventos lingüísticos os mais diversos, tanto escritos como orais, e identificarem as características de gênero em cada um. É um exercício que, além de instrutivo, também permite praticar a produção textual. Veja-se como seria produtivo pôr na mão do aluno um jornal diário ou uma revista semanal com a seguinte tarefa: "identifique os gêneros textuais aqui presentes e diga quais são as suas características centrais em termos de con­teúdo, composição, estilo, nível lingüístico e propósitos". É evidente que essa tarefa pode ser reformulada de muitas maneiras, de acordo com os inte­resses de cada situação de ensino. Mas é de se esperar que por mais modesta que seja a análise, ela será sempre muito promissora.
7.Observações finais
Em conclusão a estas observações sobre o tema em pauta, pode-se dizer que o trabalho com gêneros textuais é uma extraordinária oportunidade de se lidar com a língua em seus mais diversos usos autênticos no dia-a-dia. Pois nada do que fizermos lingüisticamente estará fora de ser feito em algum gê­nero. Assim, tudo o que fizermos lingüisticamente pode ser tratado em um ou outro gênero. E há muitos gêneros produzidos de maneira sistemática e com grande incidência na vida diária, merecedores de nossa atenção. Inclusive e talvez de maneira fundamental, os que aparecem nas diversas mídias hoje existentes, sem excluir a mídia virtual, tão bem conhecida dos internautas ou navegadores da Internet.
A relevância maior de tratar os gêneros textuais acha-se particularmente situada no campo da Lingüística Aplicada. De modo todo especial no ensino de língua, já que se ensina a produzir textos e não a produzir enunciados soltos. Assim, a investigação aqui trazida é de interesse aos que trabalham e militam nessas áreas. Uma análise dos manuais de ensino de língua portu­guesa mostra que há uma relativa variedade de gêneros textuais presentes nessas obras. Contudo, uma observação mais atenta e qualificada revela que a essa variedade não corresponde uma realidade analítica. Pois os gêneros que aparecem nas seções centrais e básicas, analisados de maneira aprofundada são sempre os mesmos. Os demais gêneros figuram apenas para 11 enfeite" e até para distração dos alunos. São poucos os casos de tratamento dos gêneros de maneira sistemática. Lentamente, surgem novas perspectivas e novas abor­dagens que incluem até mesmo aspectos da oralidade. Mas ainda não se tratam de modo sistemático os gêneros orais em geral. Apenas alguns, de modo parti­cular os mais formais, são lembrados em suas características básicas.
No entanto, não é de se supor que os alunos aprendam naturalmente a produzir os diversos gêneros escritos de uso diário. Nem é comum que se aprendam naturalmente os gêneros orais mais formais, como bem observam Joaquim Dolz e Bemard Schneuwly (1998). Por outro lado, é de se indagar se há gêneros textuais ideais para o ensino de língua. Tudo indica que a resposta seja não. Mas é provável que se possam identificar gêneros com dificuldades progressivas, do nível menos formal ao mais formal, do mais privado ao mais público e assim por diante.
Enfim, vale repisar a idéia de que o trabalho com gêneros será uma forma de dar conta do ensino dentro de um dos vetares da proposta oficial dos Parâmetros Curriculares Nacionais que insistem nesta perspectiva. Tem-se a oportunidade de observar tanto a oralidade como a escrita em seus usos cul­turais mais autênticos sem forçar a criação de gêneros que circulam apenas no universo escolar. Os trabalhos incluídos neste livro buscam oferecer su­gestões bastante claras e concretas de observação dos gêneros textuais na perspectiva aqui sugerida e com algumas variações teóricas que cada autor dos textos adota em função de seus interesses e de suas sugestões de trabalho. No conjunto, a diversidade de observações deverá ser um benefício a mais para quem vier a usufruir dessas análises.Gêneros textuais3: definição e funcionalidade
Luiz Antônio Marcuschi
2.Gêneros textuais como práticas sócio-históricas

Já se tornou trivial a idéia de que os gêneros textuais são fenômenos histó­ricos, profundamente vinculados à vida cultural e social. Fruto de trabalho coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comu­nicativas do dia-a-dia. São entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa. No entanto, mesmo apre­sentando alto poder preditivo e interpretativo das ações humanas em qualquer contexto discursivo, os gêneros não são instrumentos estanques e enrijecedores da ação criativa. Caracterizam-se como eventos textuais altamente maleáveisl. dinâmicos e plásticos. Surgem emparelhados a necessidades e atividades sócio­culturais, bem como na relação com inovações tecnológicas, o que é facilmente perceptível ao se considerar a quantidade de gêneros textuais hoje existentes em relação a sociedades anteriores à comunicação escrita.
Quanto a esse último aspecto, uma simples observação histórica do surgimento dos gêneros revela que, numa primeira fase, povos de cultura essencialmente oral desenvolveram um conjunto limitado de gêneros. Após a invenção da escrita alfabética por volta do século VII A. c., multiplicam-se os gêneros, surgindo os típicos da escrita. Numa terceira fase, a partir do século XV, os gêneros expan­dem-se com o flores cimento da cultura impressa para, na fase intermediária de industrialização iniciada no século XVlII, dar início a uma grande ampliação. Hoje, em plena fase da denominada cultura eletrônica, com o telefone, o gravador, o rádio, a TV e, particularmente o computador pessoal e sua aplicação mais notável, a intemet, presenciamos uma explosão de novos gêneros e novas formas de comunicação, tanto na oralidade como na escrita.
Isto é revelador do fato de que os gêneros textuais surgem, situam-se e integram-se funcionalmente nas culturas em que se desenvolvem. Caracteri­zam-se muito mais por suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais do que por suas peculiaridades lingüísticas e estruturais. São de difícil definição formal, devendo ser contemplados em seus usos e condicionamentos sócio­pragmáticos caracterizados como práticas sócio-discursivas. Quase inúmeros em diversidade de formas, obtêm denominações nem sempre unívocas e, assim como surgem, podem desaparecer.
Esta coletânea traz estudos sobre uma variedade de gêneros textuais relacio­nados a algum meio de comunicação e analisa-os em suas peculiaridades organizacionais e funcionais, apontando ainda aspectos de interesse para o trabalho em sala de aula. Neste contexto, o presente ensaio caracteriza-se como uma introdução geral à investigação dos gêneros textuais e desenvolve uma bateria de noções que podem servir para a compreensão do problema geral envolvido. Certamente, haveria muitas outras perspectivas de análise e muitos outros caminhos teóricos para a definição e abordagem da questão, mas tanto o exíguo espaço como a finalidade didática desta breve introdução impedem que se façam longas incursões pela bibliografia técnica hoje disponível.
2. Novos gêneros e velhas bases
Como afirmado, não é difícil constatar que nos últimos dois séculos foram as novas tecnologias, em especial as ligadas à área da comunicação, que propi­ciaram o surgimento de novos gêneros textuais. Por certo, não são propria­mente as tecnologias per se que originam os gêneros e sim a intensidade dos usos dessas tecnologias e suas interferências nas atividades comunicativas diárias. Assim, os grandes suportes tecnológicos da comunicação tais como o rádio, a televisão, o jornal, a revista, a internet, por terem uma presença marcante e grande centralidade nas atividades comunicativas da realidade social que ajudam a criar, vão por sua vez propiciando e abrigando gêneros novos bastante característicos. Daí surgem formas discursivas novas, tais como editoriais, artigos de fundo, notícias, telefonemas, telegramas, telemensagens, teleconferências, videoconferências, reportagens ao vivo, cartas eletrônicas (e-mails), bate-papos virtuais, aulas virtuais e assim por diante.
Seguramente, esses novos gêneros não são inovações absolutas, quais cria­ções ab ovo, sem uma ancoragem em outros gêneros já existentes. O fato já fora notado por Bakhtin [1997] que falava na 'transmutação' dos gêneros e na assi­milação de um gênero por outro gerando novos. A tecnologia favorece o surgimento de formas inovadoras, mas não absolutamente novas. Veja-se o caso do telefonema, que apresenta similaridade com a conversação que lhe pré-existe, mas que, pelo canal telefônico, realiza-se com características próprias. Daí a dife­rença entre uma conversação face a face e um telefonema, com as estratégias que lhe são peculiares. O e-mail (correio eletrônico) gera mensagens eletrônicas que têm nas cartas (pessoais, comerciais etc.) e nos bilhetes os seus antecessores. Contudo, as cartas eletrônicas são gêneros novos com identidades próprias, como se verá no estudo sobre gêneros emergentes na rnídia virtual.
Aspecto central no caso desses e outros gêneros emergentes é a nova relação que instauram com os usos da linguagem como tal. Em certo sentido, possi­bilitam a redefinição de alguns aspectos centrais na observação da linguagem em uso, como por exemplo a relação entre a oralidade e a escrita, desfazendo ainda mais as suas fronteiras. Esses gêneros que emergiram no último século no contexto das mais diversas mídias criam formas comunicativas próprias com um certo hibridismo que desafia as relações entre oralidade e escrita e inviabiliza de forma definitiva a velha visão dicotômica ainda presente em muitos manuais de ensino de língua. Esses gêneros também permitem observar a maior integração entre os vários tipos de semioses: signos verbais, sons, imagens e formas em movimento. A linguagem dos novos gêneros torna-se cada vez mais plástica, assemelhando-se a uma coreografia e, no caso das publicidades, por exemplo, nota-se uma tendência a servirem-se de maneira sistemática dos formatos de gêneros prévios para objetivos novos. Como certos gêneros já têm um determinado uso e funcionalidade, seu investimento em outro quadro comunicativo e funcional permite enfatizar com mais vigor os novos objetivos.
Quanto a este último aspecto, é bom salientar que embora os gêneros tex­tuais não se caracterizem nem se definam por aspectos formais, sejam eles estruturais ou lingüísticos, e sim por aspectos sócio-comunicativos e funcionais, isso não quer dizer que estejamos desprezando a forma. Pois é evidente, como se verá, que em muitos casos são as formas que determinam o gênero e, em outros tantos serão as funções. Contudo, haverá casos em que será o próprio suporte ou o ambiente em que os textos aparecem que determinam o gênero presente. Suponhamos o caso de um determinado texto que aparece numa revista científica e constitui um gênero denominado "artigo científico"; imagi­nemos agora o mesmo texto publicado num jornal diário e então ele seria um "artigo de divulgação científica". É claro que há distinções bastante claras quanto aos dois gêneros, mas para a comunidade científica, sob o ponto de vista de suas classificações, um trabalho publicado numa revista científica ou num jornal diário não tem a mesma classificação na hierarquia de valores da produção científica, embora seja o mesmo texto. Assim, num primeiro momento podemos dizer que as expressões "mesmo texto" e "mesmo gênero" não são automatica­mente equivalentes, desde que não estejam no mesmo suporte. Estes aspectos sugerem cautela quanto a considerar o predomínio de formas ou funções para a determinação e identificação de um gênero.

4.Definição de tipo e gênero textual
Aspecto teórico e terminológico relevante é a distinção entre duas noções nem sempre analisadas de modo claro na bibliografia pertinente. Trata-se de distinguir entre o que se convencionou chamar de tipo textual, de um lado, e gênero textual, de outro lado. Não vamos aqui nos dedicar à observação da diversidade terminológica existente nesse terreno, pois isso nos desviaria muito dos objetivos da abordagem.
Partimos do pressuposto básico de que é impossível se comunicar verbal­mente a não ser por algum gênero, assim como é impossível se comunicar ver­balmente a não ser por algum texto. Em outros termos, partimos da idéia de que a comunicação verbal só é possível por algum gênero textual. Essa posição, defendida por Bakhtin [1997] e também por Bronckart (1999) é adotada pela maioria dos autores que tratam a língua em seus aspectos discursivos e enunciativos, e não em suas peculiaridades formais. Esta visão segue uma noção de língua como atividade social, histórica e cognitiva. Privilegia a natureza funcional e interativa e não o aspecto formal e estrutural da língua. Afirma o caráter de indeterminação e ao mesmo tempo de atividade constitutiva da língua, o que equivale a dizer que a língua não é vista como um espelho da realidade, nem como um instrumento de representação dos fatos.
Nesse contexto teórico, a língua é tida como uma forma de ação social e histórica que, ao dizer, também constitui a realidade, sem contudo cair num subjetivismo ou idealismo ingênuo. Fugimos também de um realismo externalista, mas não nos situamos numa visão subjetivista. Assim, toda a postura teórica aqui desenvolvida insere-se nos quadros da hipótese sácio-interativa da língua. É neste contexto que os gêneros textuais se constituem como ações sócio-discursivas para agir sobre o mundo e dizer o mundo, constituindo-o' de algum modo.
Para uma maior compreensão do problema da distinção entre gêneros e tipos textuais sem grande complicação técnica, trazemos a seguir uma defi­nição que permite entender as diferenças com certa facilidade. Essa distinção é fundamental em todo o trabalho com a produção e a compreensão textual. Entre os autores que defendem uma posição similar à aqui exposta estão Douglas Biber (1988), John Swales (1990.), Jean-Michel Adam (1990), Jean­Paul Bronckart (1999). Vejamos aqui uma breve definição das duas noções:

d)Usamos a expressão tipo textual para designar uma espécie de construção teórica definida pela natureza lingüística de sua composição {aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas}. Em geral, os tipos textuais abrangem cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção.
e)Usamos a expressão gênero textual como uma noção propositalmente vaga para referir os textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica. Se os tipos textuais são apenas meia dúzia, os gêneros são inúmeros. Alguns exemplos de gêneros textuais seriam: telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem jornalística, aula expositiva, reunião de condomínio, notícia jornalística, horóscopo, receita culinária, bula de remédio, lista de compras, cardápio de restaurante, instru­ções de uso, outdoor, inquérito policial, resenha, edital de concurso, piada, conversação espontânea, conferência, carta eletrônica, bate-papo por compu­tador, aulas virtuais e assim por diante.

Para uma maior visibilidade, poderíamos elaborar aqui o seguinte quadro sinóptico:

TIPOS TEXTUAIS

5.constructos teóricos definidos por proprieda­des lingüísticas intrínsecas;

6.constituem seqüências lingüísticas ou se­qüências de enunciados e não são textos empíricos


7.sua nomeação abrange um conjunto limita­do de categorias teóricas determinadas por aspectos lexicais, sintáticos, relações lógicas, tempo verbal;

8.designações teóricas dos tipos: narração, argu­mentação, descrição, injunção e exposição
GÊNEROS TEXTUAIS

5.realizações lingüísticas concretas defini­das por propriedades sócio-comunicativas;

6.constituem textos empiricamente realiza­dos cumprindo funções em situações comuni­cativas;


7.sua nomeação abrange um conjunto aber­to e praticamente ilimitado de designações con­cretas determinadas pelo canal, estilo, conteú­do, composição e função;

8.exemplos de gêneros: telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhe­te, aula expositiva, reunião de condomínio, ho­róscopo, receita culinária, bula de remédio, lis­ta de compras, cardápio, instruções de uso, outdoor, inquérito policial, resenha, edital de concurso, piada, conversação espontânea, con­ferência, carta.eletrônica, bate-papo virtual, au­las virtuais etc.

Antes de analisarmos alguns gêneros textuais e algumas questões relativas aos tipos, seria interessante definir mais uma noção que vem sendo usada de maneira um tanto vaga. Trata-se da expressão domínio discursivo.

f)Usamos a expressão domínio discursivo para designar uma esfera ou ins­tância de produção discursiva ou de atividade humana. Esses domínios não são textos nem discursos, mas propiciam o surgimento de discursos bastante específicos. Do ponto de vista dos domínios, falamos em discurso jurídico, discurso jornalístico, discurso religioso etc., já que as atividades jurídica, jornalística ou religiosa não abrangem um gênero em particu­lar, mas dão origem a vários deles. Constituem práticas discursivas den­tro das quais podemos identificar um conjunto de gêneros textuais que, às vezes} lhe são próprios (em certos casos exclusivos) como práticas ou rotinas comunicativas institucionalizadas.

Veja-se o caso das jaculatórias, novenas e ladainhas, que são gêneros exclu­sivos do domínio religioso e não aparecem em outros domínios. Tome-se este exemplo de uma jaculatória que parecia extinta} mas é altamente praticada por pessoas religiosas.

Exemplo (1) jaculatória (In: Rezemos o Terço. Aparecida} Editora Santuário, 1977, p.54)
Senhora Aparecida, milagrosa padroeira, sede nossa guia nesta mortal carreira!
á Virgem Aparecida, sacrário do redentor, dai à alma desfalecida vosso poder e valor. á Virgem Aparecida, fiel e seguro norte, alcançai-nos graças na vida, favorecei-nos na morte!
A jaculatória é um gênero textual que se caracteriza por um conteúdo de grande fervor religioso} estilo laudatório e invocatório (duas seqüências injuntivas ligadas na sua formulação imperativa)} composição curta com poucos enunciados, voltada para a obtenção de graças ou perdão} a depender da circunstância.
Em relação às observações teóricas acima, deve-se ter o cuidado de não confundir texto e discurso como se fossem a mesma coisa. Embora haja muita discussão a esse respeito} pode-se dizer que texto é uma entidade concreta realizada materialmente e corporificada em algum gênero textual. Discurso é aquilo que um texto produz ao se manifestar em alguma instância discursiva. Assim, o discurso se realiza nos textos. Em outros termos} os textos realizam discursos em situações institucionais} históricas, sociais e ideológicas. Os textos são acontecimentos discursivos para os quais convergem ações lingüísticas} sociais e cognitivas} segundo Robert de Beaugrande (1997).
Observe-se que a definição dada aos termos. aqui utilizados é muito mais operacional do que formal. Assim} para a noção de tipo textual predomina a identificação de seqüências lingüísticas típicas como norte adoras; já para a noção de gênero textual} predominam os critérios de ação prática} circulação sócio-histórica} funcionalidade, conteúdo temático, estilo e composicionalidade, sendo que os domínios discursivos são as grandes esferas da atividade humana em que os textos circulam. Importante é perceber que os gêneros não são entidades formais, mas sim entidades comunicativas. Gêneros são formas verbais de ação social relativamente estáveis realizadas em textos situados em comunidades de práticas sociais e em domínios discursivos específicos.

4. Algumas observações sobre os tipos textuais
Em geral, a expressão "tipo de texto", muito usada nos livros didáticos e no nosso dia-a-dia, é equivocadamente empregada e não designa um tipo, mas sim um gênero de texto. Quando alguém diz, por exemplo, "a carta pessoal é um tipo de texto informa!", ele não está empregando o termo "tipo de texto" de maneira correta e deveria evitar essa forma de falar. Uma carta pessoal que você escreve para sua mãe é um gênero textual, assim como um editorial, horós­copo/ receita médica, bula de remédio, poema, piada, conversação casual, entrevista jomalística, artigo científlco, resumo de um artigo, prefácio de um livro. É evidente que em todos estes gêneros também se está realizando tipos textuais, podendo ocorrer que o mesmo gênero realize dois ou mais tipos. Assim, um texto é em geral tipologicamente variado (heterogêneo). Veja-se o caso da carta pessoal, que pode conter uma seqüência narrativa (conta uma historinha), uma argu­mentação (argumenta em função de algo), uma descrição (descreve uma si­tuação) e assim por diante.
Já que mencionamos o caso da carta pessoal, tomemos este breve exemplo de uma carta entre amigos. Aqui foram suprimidos alguns trechos e mudados os nomes e as siglas para não identificação dos atores sociais envolvidos:
Exemplo (2): NELFE-003 - Carta pessoal

Seqüências tipológicas
Descritiva
Injuntiva
Descritiva
Expositiva
Narrativa
Expositiva
Narrativa
Injuntiva
Expositiva
Injuntiva

Gênero textual: carta pessoal
Rio, 11/08/1991

AmigaA.P.
Oi!

Para ser mais preciso estou no meu quarto, escreveno na escrivaninha, com um Micro System ligado na minha frente (bem alto, por sinal).

Está ligado na Manchete FM - ou rádio dos funks - eu adoro funk, principalmente com passos marcados.
Aqui no Rio é o ritmo do momento ... e você, gosta? Gosto também de house e dance music, sou fascinado por discotecas!
Sempre vou à K.I,

ontem mesmo (sexta-feira) eu fui e cheguei quase quatro horas da madrugada.

Dançar é muito bom, principalmente em uma discoteca legal. Aqui no condomínio onde moro têm muitos jovens, somos todos muito amigos e sempre vamos todos juntos. É muito maneiro!

C. foi três vezes à K. 1.,

pergunte só a ele como é!

Está tocando agora o "Melô da Mina Sensu­al", super demais!
Aqui ouço também a Transamérica e RPC}M.

E você, quais rádios curte?

Expositiva
Expositiva
Narrativa
InjuntivaInjuntiva

Demorei um tempão pra responder, espero sinceramente que você não esteja chateada co­migo. Eu me amarrei de verdade em vocês aí, do Recife, principalmente a galera da ET, vocês são muito maneiros! Meu maior sonho é via­jar, ficar um tempo por aí, conhecer legal vocês todos, sairmos juntos ... Só que não sei ao certo se vou realmente no início de 1992. Mas pode ser que dê, quem sabe! /........../
Não sei ao certo se vou ou não, mas fique certa que farei de tudo para conhecer vocês o mais rápido possível. Posso te dizer uma coisa? Adoro muito vocês!

Agora, a minha rotina: às segundas, quartas e sextas-feiras trabalho de 8:00 às 17:00h, em Botafogo . De lá vou para o T., minha aula vai de 18;30 às 10:40h. Chego aqui em casa quinze para meia­noite. E às terças e quintas fico 050 em F. só de 8:00 às 12:30h. Vou para o T.; às 13:30 começa o meu curso de Francês (vou me formar ano que vem) e vai até IS:30h. 16:ooh vou dar aula e fico até 17:30h. 17:40h às 18:30h faço natação (no T. também) e
até 22:40h tenho aula. 1 ./ Ontem eu e
Simone fizemos três meses de namoro;

você sabia que eu estava namorando?

Ela mora aqui mesmo no «ilegível)) (nome do condomínio). A gente se gosta muito, às vezes eu acho que nunca vamos terminar, depois eu acho que o namoro não vai durar muito, entende?

O problema é que ela é muito ciumenta, principalmente porque eu já fui afim da B., que mora aqui também. Nem posso falar com a garota que S. já fica com raiva.
Expositiva
Argumentativa
Injuntiva
Narrativa

É acho que vou terminando ...

escreva!
Faz um favor? Diga pra M., A. P. e C. que esperem, não demoro a escrever

Adoro vocês!

Um beijão!

Do amigo
P. P.
15:16h
É notável a variedade de seqüências tipológicas nessa carta pessoal, em que predominam descrições e exposições, o que é muito comum para esse gênero. Não há espaço aqui para maiores detalhes, mas esse modo de análise pode ser desenvolvido com todos os gêneros e, de uma maneira geral, vai-se notar que há uma grande heterogeneidade tipológica nos gêneros textuais.
Portanto, entre as características básicas dos tipos textuais está o fato de eles serem definidos por seus traços lingüísticos predominantes. Por isso, um tipo textual é dado por um conjunto de traços que formam uma seqüência e não um texto. A rigor, pode-se dizer que o segredo da coesão textual está precisa­mente na habilidade demonstrada em fazer essa "costura" ou tessitura das seqüências tipológicas como uma armação de base, ou seja, uma malha infra­estrutural do texto. Como tais, os gêneros são uma espécie de armadura comu­nicativa geral preenchida por seqüências tipológicas de base que podem ser bastante heterogêneas mas relacionadas entre si.4 Quando se nomeia um certo texto como "narrativo", "descritivo" ou "argumentativo", não se está nomeando o gênero e sim o predomínio de um tipo de seqüência de base.
Para concluir essas observações sobre os tipos textuais, vejamos a sugestão de Werlich (1973), que propõe uma matriz de critérios, partindo de estruturas lingüísticas típicas dos enunciados que formam a base do texto. Werlich toma a base temática do texto representada ou pelo título ou pelo início do texto como adequada à formulação da tipologia. Assim, são desenvolvidas as cinco bases temáticas textuais típicas que darão origem aos tipos textuais (o que foi utilizado acima para a segmentação das seqüências observadas na carta acima analisada).